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Privatização da DESO e o gozo do liberal (IV)


Publicado em 26 de janeiro de 2024
Por Jornal Do Dia Se


* Carlos Alberto Menezes
 
No último artigo que escrevi, fiz menção à ideia de que o liberal como jogador é um sujeito que, no geral, sabe das coisas. (Naturalmente, as coisas acerca das quais ‘sabe’ nada tem a ver com a sabedoria dos antigos, nem com a ciência dos modernos; tem a ver apenas com sua capacitação para o reconhecimento de oportunidades que, se bem aproveitadas, podem levá-lo a ganhar mais.)Numa redução bem esquemática, dá para dizer que ele joga a partir de 02 (dois) diferentes lugares, a saber, o Estado e o mercado. Num e noutro lugar, o liberal deseja o máximo, seja o máximo de poder no Estado, seja a posição de proprietário máximo no mercado. Embora ocupem lugares diferentes, pensam de forma semelhante. Não gostam do Estado [salvo se estiver sob seu comando e domínio], não gostam do povo [sob essa palavra, todos não passam de consumidores], não gostam da lei [salvo,por um lado, a do mais forte, feita para defendê-lo e, por outro, a da oferta e da procura]. Tais gostos equivalem a imagens do mundo que estão na base do preconceito de ambos. Mas que coisa é o preconceito do liberal e como se apresenta?
Com efeito, o preconceito do liberal é um estado de espírito que se apresenta sob a forma de manifesto desrespeito ao diferente. O ‘diferente’ aqui tem o sentido da particularidade que, sendo própria de uma pessoa, de um povo, de uma classe social, não é própria de outra pessoa, de outro povo, de outra classe social. Isso permite instaurar o par, ou melhor, a oposição melhor/pior, de modo que o pior, sendo malvisto pelo melhor, passa a ser descriminado e sujeito a exclusão. Assim, por exemplo, o preconceito da moral sexual média enxerga a pessoa ligada ao LGBTI+ como dotada de particularidade que a torna diferente. Semelhante, embora numa escala catastrófica, foi o culto da raça boa – a ariana – versus o ódio à raça ruim – o judeu – cuja solução [final] implicava e passava pela ideia de que a preservação ou sobrevivência daquela tinha como pressuposto a eliminação desta. Nada disso, contudo, interessa ao liberal de hoje. O conflito no qual se mete tem outro perfil. Que perfil? Antes de responder a isso, convém fazer uma distinção. Ela envolve dois personagens diferentes do mercado, embora sejam unidos por um discurso [=não gostam do povo e só um pouquinho do Estado e da lei] que é comum a ambos.
Os personagens diferentes do mercado são o empresário raiz e o empresário privatista [= comprador de empresas estatais prontas], às vezes nomeado como concessionário do serviço público. Eles são dotados de características que, de um lado, tornam aquele ligado ao núcleo duro do mercado e, de outro, tornam o último próximo do limite que separa o Estado da iniciativa privada. O ‘núcleo duro do mercado’ é constituído pelo empresário raiz, dono de empresas predicáveis como genuínas e legítimas. A genuinidade e legitimidadede tais empresa têm origem e fundamento na circunstância de que foram criadas pela iniciativa privada, enfrentam concorrência, têm de agir com velocidade na definição de movimentos táticos e estratégicos para combater e superar o adversário, quer dizer, o inimigo. No mercado, a presença do inimigo, do concorrente, torna o ambiente hostil. Num ambiente hostil, só sobrevive quem for destemido, ousado, audacioso, hábil. Mais ainda: o empresário raiz, além de destemido, ousado, audacioso, hábil, tem de se apresentar com outro predicado, a saber, o de sedutor. Ele precisa seduzir quem?O cliente, ora. Se não o seduzir, quebra.A arte da sedução funciona como se fosse uma isca, quer dizer, a atração sem a qual o freguês resiste a se encostar no balcão, abrir o bolso e levar a mercadoria.
O concessionário é diferente, muito diferente. Em primeiro lugar porque não é criador, nem fundador de nada; não tem que agir com velocidade na definição dos lances ou movimentos aplicáveis contra o inimigo, pois, afinal, além de operar sem concorrência, conta com um grau baixíssimo de censura pública se tiver desempenho aquém das expectativas. Em segundo lugar, porque não tem que ser destemido, ousado, audacioso, hábil, pois o ambiente em que circula e atua, sem adversários, não é hostil. Finalmente não tem que seduzir ninguém pois monopoliza o mercado na área em que opera, deixando o freguês sem alternativas e, como consequência, submisso ao “despotismo” desse diferente e privilegiado mercador. Esses são alguns dos traços que compõem o perfil dessa nova modalidade de liberal, encarnada num tipo de personagem que entrou em cena sobretudo a partir da segunda metade do século XX. 
Mas tem outro traço. Ele apregoa que detém a receita infalível para blindar a população contra os males que se projetam do Estado ali onde este abusa de seus limites, por exemplo, quando se mete a prestar serviços que seriam típicos da iniciativa privada, por exemplo, a exploração, distribuição e comércio da água. O segredo dessa receita nada tem de dissimulado ou oculto, é bem visível, está na frente de todos, enfim, é ele mesmo, o mercador!Sua crença é a de que está acima de todas as adversidades e que é senhor de dotes que fazem dele um mago ou, numa linguagem mais moderna, um sujeito cuja competência, para além de qualquer dúvida ou questionamento,torna-o capaz de, como o CEO que é, decretar a solução dos impasses de seu mundo, o mundo dos negócios. Isso, a coisa aí descrita, é a representação do “narciso” ou do”charlatão”? A resposta depende da cabeça de quem vê e pensa o problema. Na cabeça de um psicanalista, o cara não passa de um ‘narciso’; na cabeça do jurista, contudo, o cara é um ‘charlatão’. Mas, que coisa é o charlatão? Bem, é o sujeito sem identidade própria e que toma de empréstimo a vestimenta, por exemplo, do empresário raiz e, com a pompa, o riso e a lábia dos falsários, penetra nos seus salões para, já durante a festa, pô-lo a seu serviço. Competente? Talvez sim, mas no papel de enganador. Essa é sua audácia, a audácia charlatã.         
Com isso, solucionei o problema que formulei no final do último artigo que publiquei aqui, no JORNAL DO DIA. Mais do que uma solução, esclareci que não tenho preconceito contra o empreendedor em geral. Aliás, nisso o MinistroBARROSO [STF] estava com razão quando foi à cidade luz [PARIS] e, recentemente, iluminou-a ainda mais com suas luzes ao dizer que o brasileiro precisava “superar o preconceito contra a livre iniciativa e o empreendedorismo”. Suas palavras, contudo, embora claras, não conseguiram ser distintas. Para tanto, precisaria diferenciar o milagre criador, próprio do empresário raiz, e o milagre charlatão, próprio daquele sujeito que [para usar a linguagem de NIETZSCHE] sem “instinto de Estado”, aciona seu “instinto financeiro” na busca do enriquecimento fácil, abusivo e preguiçoso.      
 
* Carlos Alberto Menezes é advogado e ensina Direito Penal na UFS [UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE] sendo, também, doutor em Direito pela PUC/SP [PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO].
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