Segunda, 07 De Abril De 2025
       
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Quem não sabe ler leva carta pra morrer!


Publicado em 13 de março de 2025
Por Jornal Do Dia Se


Escutar as ruas, as canções populares, para saber

* Andrei Albuquerque
Em seu “Discurso de Roma”, Lacan afirmou que os psicanalistas deveriam escutar as ruas, as canções populares – a diversidade da sabedoria popular – como um saber que carrega uma verdade, “uma” porque não há a verdade última em relação ao humano, ao inconsciente.
Por outro lado, não significa que a realidade material deixe de ter a sua evidência senão haveria apenas factoides, fake news e narrativas fantasiosas que falam muito sobre a perspectiva de quem as produz sem ter compromisso, tampouco honestidade intelectual com os fatos, em resumo: o mentiroso revelaria algo sobre si na mentira que cria e repete.
Assim, para a psicanálise a ignorância seria uma paixão, uma afetação, que recusaria o saber, que poderia recusar a realidade material e a perspectiva do outro, seria uma posição afetiva que diz mais a respeito de sua história e convicções do sujeito do que sobre as suas dificuldades cognitivas ou lacunas em sua formação. A sabedoria popular revelaria alguma verdade perante as certezas e a ignorância rancorosa por pulsar junto ao real da vida, em sua faceta tragicômica, que está nas canções populares que encarnam as dores de amor ou um uipitipiti que sacode o corpo, nas pilhérias, na galhofa e nos diálogos pelas ruas e biroscas, pelas feiras onde a linguagem está mais viva e pulsante.
O que Lacan chamou a atenção já estaria em peças de Shakespeare que foram baseadas em lendas e no folclore, nas desventuras de João Grilo e Chicó de Ariano Suassuna, em um Leopold Bloom joyceano que pode circular pelo Siqueira Campos, um homérico homem comum.
Logo pela manhã, em uma emissora de rádio, um locutor – que costumeiramente se mostra muito benevolente, manso e humilde de coração em suas entrevistas com poderosos e autoridades – atacava todo e qualquer serviço público como se nada prestasse, esquecendo que tomou vacinas pelo SUS, que tem seu lixo e seu chorume coletados por trabalhadores invisibilizados que cuidam da limpeza pública, que tem segurança pública no bairro de classe média onde ele, homem branco com formação universitária, deve morar. Ainda afirmava que os impostos para nada serviam, então a encenação radiofônica ficou cansativa aos meus ouvidos.
Evidente que a demonstração de ignorância agrada a parte de seus ouvintes, ataque afetivo que encontra o seu público afeito à gritaria, a uma verborragia sem apresentação de fatos e argumentos consistentes. Portanto, cabe questionar, implicar, o que a gritaria pode dizer sobre o indignado e o seu grupo? E quem nunca encontrou um indignado inconveniente, um Brancaleone sem exército, no açougue, nas filas de supermercado, a distribuir teorias conspiratórias mirabolantes? Melhor aceitar, como aponta o escritor catalão Enrique Vila-Matas:
“Não disse alguém que algumas mentes pertencem a períodos anteriores da história e que é bom saber que entre nossos contemporâneos há babilônicos e cartagineses, e também gente da Idade Média?”
Quanto ao título “Quem não sabe ler leva carta pra morrer!” ouvi de Josefa Luíza, trabalhadora rural do interior de Sergipe, como ouvi outras máximas de sua sabedoria forjada em um longo percurso de dificuldades e experiências. Aos 60 e poucos anos, Luíza ainda dizia ser analfabeta por não conhecer as letras e por isso vez ou outra soltava essa sentença. Se ela ignorava as letras, por não ter tido a necessária formação escolar, havia um saber, um gaio saber, que resistia a uma ignorância rancorosa por meio da alegria, da constatação risível da comédia da vida.
No entanto, a frase de Luíza podia ser escutada também acerca de um desconhecimento de si, a falta de um saber sobre o próprio inconsciente, seus sintomas e suas repetições incômodas. Na análise, o analisante também chega trazendo a sua “carta” que não sabe ler e que talvez revele algo sobre os seus desencontros amorosos que se repetem, seus fracassos que lhe assaltam o humor e que são deslocamentos de outros conflitos, inclusive edipianos.
Comum que procurem o consultório analítico com uma carta chamada psicodiagnóstico que pode ser TDAH, TOC, TAG, TEA ou qualquer outra sigla, também uma fibromialgia, enxaqueca etc. No entanto, a importância do psicodiagnóstico deve ser a de apontar uma direção para o tratamento que não seja um ponto de chegada, mas de interrogação. Desse modo, o que importa é que o sujeito em análise fale sobre o seu diagnóstico, o que lhe afeta em sua história, que se implique em seus sintomas que foram nomeados pelo médico ou pelo dr. Google.  E que escolha entre produzir um saber sobre si ou permanecer no gozo da ignorância, portando a sua carta que não sabe ler.
* Andrei Albuquerque, psicanalista e psicólogo. Mestre em psicologia social/UFS. Publicou 2 livros, artigos e textos em jornais.
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