Majestosa
Quem nasceu para o samba
Publicado em 17 de abril de 2018
Por Jornal Do Dia
Triste é o dia quando a página de Cultura dos periódicos assume a função de obituário. Remedia-se assim, em alguns poucos parágrafos, o talento negligenciado em vida, como a proclamar, redundante: Inês é morta.
Eu, de minha parte, resisto sempre ao sentimento fácil dos necrotérios. Se um sambista passa dessa para melhor, por exemplo, celebro o morro e o samba. Sem uma lágrima de mentira. Sem a dor tomada aos seus próprios. Sei feliz, a vida que se aproveita em um verso. Morre o homem, fica a fama.
Deus me livre das homenagens tardias. Desse pecado, quero as mãos limpas. Se Dona Ivone Lara foi cantar nas alturas, entre os anjos de pele negra, deixou, antes de partir, algumas das melodias mais bonitas da música brasileira. Não há o que lamentar, portanto. Muito ao contrário. "Quem nasceu para o samba não pode parar".
O brasileiro é um povo de memória curta. Esquece os vivos, assombrado pelos fantasmas dos próprios mortos. Há poucos anos, Dona Ivone Lara falou a um repórter da Folha de São Paulo, desanimada. A força da imaginação não promovia a sua música. Aos 90 anos, reverenciada por todos os grandes do meio, com um repertório repleto de composições inéditas guardadas no fundo da gaveta, sem despertar nenhuma interesse comercial, a sambista tinha a impressão de sufocar, enterrada viva.
Vai-se Dona Ivone Lara, majestosa. E eu só consigo pensar na frase atribuída a Cazuza, no filme de Sandra Werneck e Walter Carvalho, lançado em 2004. Devastado pela doença que lhe roubaria a alegria escandalosa da juventude, em seus últimos dias de vida, o poeta constata, como quem oferece alento: "Morrer não dói".