Raízes da violência
Publicado em 21 de agosto de 2020
Por Jornal Do Dia
* Carolina Mello
Vez em quando algum caso de menina estuprada e engravidada nos horroriza ao estampar o noticiário. O cenário atual é Recife, onde a criança foi levada para interromper a gestação fruto da violência imposta pelo próprio tio, no Espírito Santo. História triste, história repetida.
O horror geral escamoteia as razões por trás de algo familiar. De acordo com relatório do Unicef, em todo o mundo, cerca de 15 milhões de adolescentes meninas foram abusadas. Em 28 países da pesquisa, 90% das vítimas afirmaram que o algoz era alguém próximo.
Após a reverberação do drama sofrido pela garotinha capixaba de 10 anos no acesso ao aborto legal, outras vozes irromperam em Minas Gerais para compartilhar da mesma dor e vergonha as quais foram submetidas tão precocemente.
As reportagens foram publicadas nesta semana pela Agência Pública, e repercutidas por outros sites e jornais em todo o País.
São relatos vindos de Várzea de Palma, eclodidos a partir do dia 18 outubro de 2019, quando Ana Paula Fernandes dos Santos foi à delegacia prestar queixa dos abusos sofridos dos 9 aos 11 anos por uma pessoa querida, da confiança de todos na cidade.
Depois da denúncia de Ana Paula, como é usual em crimes sexuais desse tipo, mais pessoas se sentiram encorajadas a falar, resultando em um inquérito composto por depoimentos de 16 testemunhas e 14 vítimas de Dinamá Pereira Resende, 54 anos.
Desde 1987 Dinamá reúne crianças de 6 a 14 anos, principalmente meninas, em torno de uma liga católica e grupos de dança folclórica. Nesses 30 anos, as atividades gratuitas movimentaram a pastoral e as escolas da cidade, sendo uma alternativa de lazer e segurança alimentar para filhas de lares muitas vezes instáveis e desassistidos de políticas públicas.
Por meio da apuração de Elisangela Colodeti e Naina Andrade, repórteres da Agência Pública, ficamos sabendo que o maior medo de Ana Paula durante a infância violada era engravidar. Um pavor que a assaltava todos os dias durante os três anos nos quais foi estuprada.
Em meio a tanto sofrimento, Ana Paula ao menos livrou-se da situação de, enquanto criança, se ver obrigada a gestar outra criança. Os anos se passam e a história se repete, dessa vez com novos atores, em outro rincão do Brasil, mas a vítima não teve a mesma sorte.
O horror prossegue, é enorme, abraça a todas nós. A garotinha capixaba violada e fecundada contra a vontade dentro de casa é só mais uma história de lar fragilizado pela presença da pedofilia naturalizada e ausência do Estado.
Estamos falando, aqui, de duas violências primas, talvez irmãs, brotadas da mesma raiz. Essa raiz é profunda e se espalha por todo o solo da Terra Brasilis.
Há 10 anos, quando era eu a repórter e visitava o município de Pinheiro, no Maranhão, ouvi da boca de Zé Agostinho, por entre as grades da delegacia regional, uma afirmação do senso comum para justificar seu crime. Ele me disse que tinha direito sobre o corpo da filha. Se ele cuida, alimenta, dá teto, é dele, ele pode usar.
Em nome dessa certeza e diante da indiferença da comunidade, Sandra foi mantida em cárcere privado por 16 anos e obrigada a gerar outras crianças. Quando a polícia finalmente bateu no casebre de taipa para efetuar a prisão em flagrante, as filhas tinham 5 e 7 anos. A mais velha já era abusada pelo pai-avô.
Vale, aqui, fazer uma breve e importante ressalva antes de motivar falsas conclusões. Embora estejamos tratando das histórias de uma violência vicejada no Brasil profundo, os dados do Unicef apresentados no início da coluna mostram o quão global é esse problema.
Mesmo que ambientes de inseguridade econômica e baixa escolaridade possam ser fecundos para a violação da infância, o horror encontra-se, também, em lares abastados, blindado por um silêncio mais difícil de ser rompido, protegido por brios conservadores, pelo falso brilho do status quo e por formas de violência simbólica mais sofisticadas, como afirma a socióloga Heleieth Saffioti no livro "Gênero, Patriarcado, Violência".
A crença generalizada de que o corpo tutelado, frágil, feminino, infantil está disponível para ser usado e abusado por alguém mais capaz, mais forte, mais velho, geralmente seu protetor, é uma ideologia de poder. Esse poder, desigual e violento, é masculino.
Enquanto nossas casas forem sustentadas pelos alicerces desse poder caduco, não vão faltar, nas páginas dos jornais, histórias de meninas violadas e engravidadas.
* Carolina Mello, jornalista pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA), interessada em política, feminismo, literatura e cinema. Email: carolinagracamello@gmail.com Twitter: @mellocomdoisele