RESTAURANTE SEM FOGÃO
Publicado em 24 de novembro de 2020
Por Jornal Do Dia
* Ary Moreira
Há todo tipo de restaurantes, situados nos mais diversos e variados lugares, como o da torre de Brasília, ou flutuantes como vi em Manaus ou em conceição da Barra, no Espírito Santo, ou ainda, a CANTINA Do CHINA, em Salvador, com apenas quatro mesas, cujo forro era constituído de garrafas, que certa feita, a Radio Sociedade da Bahia instituiu o concurso com a pergunta: "quantas garrafas contém o forro da CANTINA DO CHINA?" O garçom era DUDU, um corcunda muito gentil e atencioso. A Cantina não abria às segundas feiras e tinha como prato essencial a moqueca de siri mole, e uma bebida por Dudu, preparada, sempre por encome nda, chamada NÓ CEGO, ninguém era capaz de tomar duas dozes. Porém todos esses locais de pastos, tinham fogões, menos o de Rosinha Vitório, localizado num local sumamente aprazível, sombreado por árvores frondosas, visitadas por uma variedade de pássaros, comendo ração à vista de todos, ás margens do asfalto da BA 290, ligando Itanhem à Alcobaça, fazenda Serrinha de seu velho pai, Antonio Vitorio, meu querido e prezado amigo de saudosa memória, bem como d. Alvina, pessoas simples e de fino trato, sabendo receber os visitantes, o mais importante, souberam transmitir com fidelidade, esta qualidade, raramente hoje, presenciada, sobretudo nessa horrorosa fase de pandemia. O velho Antonio Vitorio, em sua pequena propriedade contrastando com a numerosa prole, tinha uma pequena fábrica de cachaça total mente rústica e artesanal, cujo engenho era acionado por uma junta de bois, que girava pachorrentamente em circulo, para que o pequeno engenho de ferro, pudesse esmagar a cana, deixando que o caldo descesse por gravidade até os cochos de madeira, extraída das frondosas árvores de vinhático ou jequitibá, tão abundantemente existentes em toda a mata atlântica, para depois de escavadas, cuidadosamente permitirem espaçoso local para depositar o liquido. Então depois de preparar o fermento, geralmente feito de milho torrado, que era acrescido em pequena dose ao caldo. Depois de 24 horas, o efeito do fermento ocorria e começava a ferver, no que era chamado "no ponto trabalhado". A calda fermentada era depositada dentro do alambique de cobre, com a parte de cima chamada capelo, com uma ponta saindo para o lado, lembrando a tromba de elefante, de onde o lí quido destilado escorria. O alambique era acondicionado sobre uma fornalha, imperativo necessário para o aquecimento do liquido, pois somente depois de atingir 100º de calor, começava a fervura, necessária para acontecer a evaporação. Era chegada a vez do funcionamento do capelo, o vapor subia ao teto interno dele, que por cima recebia um jato constante de água fria, provocando a condensação causada do encontro do calor do vapor interno com a água fria externa, o liquido assim destilado escorria pela tromba elefântica. Mas o aproveitamento era muito pequeno porquanto o capelo deixava escapar muito vapor. Além disso, por ser removível, era preciso tapar todas as saliências com uma papa de farinha para impedir o escapamento do vapor. A produção era insignificante: 10, 15 litros por lambicada. Mas era sua pequena produção considerada de excel ente qualidade e a mais disputada da região. Ficou famosa e conhecida como; "é de Antonim Vitório". Se vivo estivesse, creio que o meu amigo Atonim Vitório se orgulharia da semente deixada, que mesmo sem saber quem foram Karl Marx e Friedrich Engel, terminou por instituir um socialismo caipira em torno de sua magnífica prole, onde todos participam da falta de fogão do Restaurante de Rosinha. Grande parte de seus filhos, ainda se encontra estabelecida na pequena fazenda por ele adquirida no final de 1930, sendo que muitos ali nasceram e se recusaram de ficar longe de onde têm o umbigo enterrado. O socialismo, no meu entender ocorre da seguinte maneira: Rosinha tem o restaurante mas não tem fogão, por isso que faz ela? Divide todas as tarefas desde o abate das galinhas caipiras, que os sergipanos chamam de "galinha de capoeira", que Rosinha levada pelo vezo dos supermercados denominarem "frango", não admite que se denomine galinha, mas sim frango. Como se pudesse fazer a distinção da raça galinácea. Uma família abate os frangos, outra prepara os doces, sucos etc. Rosinha, sozinha sem copeira, faz tudo, apenas se encarrega de servir os pratos acompanhados de bebidas, estas sim, do restaurante. Até a antiga qualidade de excelente da cachaça de seu velho pai, sua galinha caipira herdou. As pessoas comunicam a quantidade que irão comer a galinha de capoeira que será como a Cantina do China, fechada às segundas, com uma diferença ela somente serve a galinha aos domingos, por encomenda. Com a pandemia ficamos abstenicamente sem frangos por uma longa invernada. Rosinha, ainda solteira, é de uma ternura impar, de beleza dupla, tanto externa como interna. Para se ter uma ideia de sua grandeza de caráter, ela preparava-se para se aposentar, porém ao se apresentar para a entrevista, ao ser inquirida qual sua ocupação e aferição de renda, se de apenas sua pequena proprietária, informou que tinha um bar. Tendo por isso negada a aposentadoria. Teve que recorrer. Quando eu lhe disse que não havia necessidade de se lembrar do bar, ela constrangida respondeu-me: "eu não sei mentir". Ela pode não saber mentir e cozinhar, mas com voz rouca, sotaque bem distinto dos demais, sabe não só receber seus inúmeros fregueses e amigos, inclusive, para melhor atraí-los, fez erguer um minúsculo parque de diversões, com balanços, escorregadores para crianças, onde recentemente tive oportunidade de distrair minha pequena neta Anna Clara, que nos seus incipientes três anos, usufruiu de ambas as delicias: diversão, galinha e balanços.
* Ary Moreira é advogado