Não gostou? Muda o disco!(Divulgação)
Um elogio ao insulto
Publicado em 23 de dezembro de 2023
Por Jornal Do Dia Se
Rian Santos
riancalangodoido@yahoo.com.br
Eu sou devoto da heresia. O viado no armário interpretado por Gregório Duvivier, tentado por um Fabio Porchat virado no diabo, me presenteou com a gaitada mais satisfeita do ano da graça de 2019. Eu me refiro, convém refrescar a memória do leitor, a uma sátira deliciosa da produtora Porta dos Fundos, ‘A última tentação de Cristo’. Padres, beatas e coroinhas, um grupo contrito de católicos praticantes, tiveram uma impressão diferente. E foram à barra dos tribunais para cobrar uma reparação milionária pela ofensa alegada.
Felizmente, há tempo para tudo sob o céu. O processo movido pelo grupo católico ultraconservador Associação Centro Dom Bosco de Fé e Cultura foi julgado improcedente. Segundo o tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, uma obra de humor não tem o poder de abalar os fundamentos de uma religião. Li a notícia e gaitei de novo.
Para o inferno com a religião, os mitos de uns e outros. Fé é questão de foro íntimo. A liberdade de expressão, por outro lado, é condição fundamental para o exercício pleno dos direitos individuais. Talvez por isso, nunca deixou de ser atacada. De outro modo, a bomba que mandou a redação da revista Charlie Hebdo pelos ares, anos atrás, jamais teria sido detonada.
Neste particular, umbandistas, católicos, evangélicos neopentecostais e mulçumanos rezam pela mesma cartilha, tendem a reagir da mesma forma, consideram a galhofa intolerável, um pecado imperdoável.
Sagrado, para mim, só há a música de Johan Sebastian Bach. Deus, Papai Noel, o santo sudário e as árvores de Natal, ao contrário, não passam de personagens e elementos de histórias forjadas com propósitos pedagógicos, a fim de impressionar os espíritos mais delicados.
Cada cabeça, um mundo. Para mim, Bach é divino, maravilhoso. Há interpretações das Sonatas para Cello que ferem os meus ouvidos. Mas ainda bem que eu tive sorte de conhecer a leitura impecável de Mischa Maisky, antes mesmo de ser atropelado pela execução manjada de Yo-YoMah. Quando canso de um ou de outro fico muito satisfeito de mudar o disco.
Zeitgeist – Este ano, o especial natalino do Porta dos Fundos, já gravado, não será exibido. Em comunicado, a produtora afirma que o texto foi escrito e filmado em uma outra conjuntura e a exibição do programa poderia dar margem para uma interpretação indevida, em função do conflito entre Israel e Hamas. O programa seria exibido pela Paramount+ e, pela primeira vez, foi feito em formato stand-up.
Para comemorar a décima edição, a obra narraria com humor algumas histórias consideradas inusitadas do Velho Testamento. “Humor é timing e o timing para esse lançamento não é o adequado”.
Ignorado pela artilharia de progressistas e reaças, uma posição confortável, eu lamento. Mortificado pela curiosidade, encaro a decisão dos comediantes reunidos na produtora como um imperativo comercial, uma limitação da sensibilidade corrente, uma infeliz imposição do tempo presente.