"Uma cidade sem alma"
Publicado em 27 de novembro de 2018
Por Jornal Do Dia
* Raymundo Mello
(publicação de Raymundinho Mello, seu filho)
A memória de hoje vem-nos da edi- ção n.º 3.909 do ‘Jornal do Dia’ (12/07/2016). Transcrevo na íntegra o texto escrito por meu pai, o ‘Memorialista Raymundo Mello’, sob o título "Pessoas". Boa leitura pra todos!- Pessoas. Vivemos rodeados delas. Algumas, próximas, bem próximas; outras, próximas, mas não tanto, assim mesmo, pessoas que merecem acolhida, atenção, respeito. É com pessoas ao nosso redor que vivemos.
Não me considero um especialista para tal assunto, mas, como toda a minha vida – graças a Deus! – tenho vivido ao redor delas, atrevo-me a escrever sobre o tema, porém, a nível de ‘memória’.
Trabalhei sempre atendendo ao público, seja em ‘companhias de aviação’ – ‘Transcontinental’, ‘Real Aerovias’ e ‘Varig’ -, no ‘serviço público federal’ – ‘Ipase’ e fiscalização do ‘IAPAS’, hoje INSS – e prestando ‘serviços de assessoramento bancário’ – bancos ‘Prado Vasconcelos Júnior’ e ‘da Província do Rio Grande do Sul’ -, tudo sempre lidando com relacionamento público, tratando com pessoas, conhecendo gente, fazendo amizades. Ainda hoje, encontro amigos com os quais convivi, e nesses rápidos encontros sempre vêm à tona detalhes de ocorrências que, ao serem lembradas, ‘parece-que-foi-ontem’, como se diz.
Com antigos colegas de escola – ‘ginásio’ e ‘científico’ -, cada encontro é uma novidade a acrescentar – "Fulano morreu."; "Beltrano? Ah, agora é autoridade e com idade igual ou maior que a nossa"; e vamos relembrando.
Eu tive – lembro bem – um colega que era ‘levado-da-breca’, a maior e melhor ‘gargalhada’ que conheci. Há algum tempo, não muito recentemente, encontrei-o na rua João Pessoa, ele de batina, livro de orações na mão, bem solene, e eu, de braço dado com a esposa. Paramos, um frente ao outro, e de pronto nos identificamos: "Você é … ?", "Sou. E você é … !"; "Perfeitamente! Que ótimo encontrá-lo. Bom lhe ver!". E o complemento, seguido de uma de suas melhores gargalhadas: "Rapaz, como o tempo muda tudo. Você tinha aquele jeitão de quem ia ser padre, e eu, namorador danado; e aí, tanto tempo depois, nos encontramos aqui na ‘João Pessoa com Laranjeiras’, eu – disse ele -, ‘Padre Católico’, e você – comigo -, cidadão elegante como sempre, de braço dado com a esposa. Trocamos de caminho". E aí, sua enorme gargalhada chamou a atenção de quem passava. Não estranhei porque ‘sempre’ o conheci assim – alegre, conversador e risonho, muito risonho. Algum tempo depois, soube que ele havia deixado a carreira sacerdotal. Mandou-me um livro com pedido de opinião. Li, mas não mandei opinião.
É assim! A gente vai vivendo, fazendo novos relacionamentos e convivendo com pessoas. Aquele velho amigo tinha razão: sempre fui homem ligado à ‘Igreja Católica’ e nessa área tenho muitos e grandes amigos, padres e leigos. Não vou aqui citar pessoas com as quais convivo hoje no ambiente Igreja; primeiro, porque não posso – nem devo – fazer destaques, e, segundo, porque prefiro lembrar e incluir nas ‘memórias’ algumas pessoas com as quais convivi e/ou me relacionei e que deixaram algo digno de registro.
Hoje quero registrar um grande momento de fé que vivi em 1974. Àquela época, como já registrei aqui mesmo no ‘Jornal do Dia’, eu estava muito ligado, por amizades pessoais, à ‘Paróquia Santo Antônio’, e ali, após uma ‘Missa Dominical’, fui convidado pelo amigo ‘Capitão Juvenal’, remanescente da ‘Força Expedicionária Brasileira’, excelente caráter, para participar de um ‘Cursilho de Cristandade’ Arquidiocesano. Aceitei e participei. Foi, na verdade, o primeiro Cursilho promovido com equipes totalmente sergipanas. Os três anteriores (1973 e 1.º semestre de 1974) foram totalmente montados e dirigidos por pessoal vindo de Salvador (BA). Os "baianos" nos deram essa enorme ajuda e só liberaram os trabalhos para os de casa quando sentiram que já era hora.
Esse Cursilho – o 4.º – teve a ‘Direção Espiritual’ de ‘Dom Luciano Duarte’ e do ‘Padre Edu Aguiar’, foi coordenado pelo médico ‘Eduardo Vital Santos Melo’, cristão católico extremamente qualificado, e teve em sua equipe de trabalho figuras bastante conhecidas, como o Dr. Walter Cardoso, Jadson Barbosa de Matos, Osvaldo Leite, Raimundo Araújo, José Antônio Peixoto, Eduardo Fonseca, Jurandyr Cavalcanti, Jairo Alves de Almeida, Rodrigo Lima, e outras pessoas que, no momento, não me ocorre seus nomes. Em conjunto, fizeram uma prestação de serviço cristão de grande valor, especialmente pelo momento que vivia a Igreja Católica no mundo – local também – à época, e o Movimento de Cursilhos, idealizado pelo Bispo de Málaga, na Espanha, ‘Dom Hervaz’, com base nos então recentes documentos do ‘Concílio Vaticano II’, prestou grande serviço à Igreja Católica.
Pode-se dizer que o ‘Movimento de Cursilhos de Cristandade’ trouxe um grande impulso de elevação da fé cristã católica para o Brasil, Sergipe inclusive, alimentando sedentos de catequese moderna – aqueles batizados que queriam viver a fé cristã e faltava-lhes quem a anunciasse.
Pois bem! Nesse evento, e em alguns outros que participei, convivi com excelentes pessoas e que me ensinaram muito, relatando o texto dos temas, acrescidos de experiências e testemunhos pessoais.
Lá, no ‘Convento São Francisco’, em São Cristóvão, durante a realização do encontro (5.ª feira, 19 h a domingo, 19 h) fomos todos nivelados, sem doutor ou senhor – à exceção do clero -, éramos todos ‘Fulano’, irmãos, sempre incentivados por uma canção linda intitulada "Decolores", também usada como cumprimento no pós-Cursilho. Ainda hoje troco esse cumprimento com ‘irmãos’ com quem convivi em algum dos eventos.
Resolvi destacar um dos ‘irmãos’ do 4.º Cursilho Arquidiocesano, como exemplo nessa ‘memória’ e, entre os 75 participantes (30 dirigentes e 45 neo-Cursilhistas), elegi, por conta própria, o nosso Coordenador Geral, à época intitulado ‘Reitor’, Eduardo Vital Santos Melo, em respeito e in memorian.
Sempre que era possível, em reuniões e fora delas, sobre assuntos diversos – de religião a cultura – eu tinha perguntas, e ele, respostas. Homem inteligente, conhecedor de vários idiomas, a cada conversa ele sempre fazia citações em Francês, Inglês e Latim, e eu sempre dizia: "Traduza, por favor, não sou poliglota como você". Ele ria, e com aquele estilo de voz calma e rouca, traduzia a citação.
Era bom conversar com o Dr. Eduardo Vital. Mas não era fácil, ele estava sempre ocupado e preparando trabalhos, além de atender sua clientela – era Médico Psiquiatra.
Certo dia, conversamos sobre viagens. Ele conhecia grandes capitais do mundo e, segundo ele, quase o Brasil inteiro, capitais e grandes centros, e, a meu pedido, fez várias referências a grandes cidades, do Brasil e do mundo.
Disse-me que gostava de viajar e tinha êxito quando se tratava de viagem a trabalho – fora ‘Secretário da Saúde’ no ‘Governo Lourival Baptista’. Só não se sentia bem quando ia a Brasília para negociação de obras e verbas. Mal começava a tratar dos assuntos, logo surgiam dificuldades e sugestões suspeitas, "procure tal setor, tal empresa", e ‘ele entendia a que ponto queriam chegar’. E, sabedor do prestígio pessoal do Governador Lourival Baptista junto a Ministros e outras autoridades, cortava o assunto, dizendo: "Vou conversar com Dr. Lourival Baptista, nosso governador". E aí, as sugestões paravam e o assunto era logo resolvido. "Eu não gostava da maneira cheia de insinuações daquela gente, cortava os assuntos de cara, e as dificuldades caíam, sem suborno" – disse-me certa vez. E concluiu: "Brasília, Raymundo, é uma cidade sem alma!".
Era assim o Dr. Eduardo Vital – exemplo de respeito pela coisa pública. Isto nos anos 70/80.
Ele é falecido. O Estado de Sergipe já lhe prestou alguma homenagem? Se ainda não, é hora de fazê-lo, e reconhecer um administrador honesto.
E.T. – Dr. Eduardo era "amigo de fé e irmão camarada" de Dom Hélder Câmara – "sabia escolher suas amizades".
* Raymundo Mello é Memorialistaraymundopmello@yahoo.com.br