A MORTE ESPERADA
Publicado em 07 de dezembro de 2014
Por Jornal Do Dia
* Paulo Fernando Morais
Domício Borges, catador de caranguejo no rio Ganhamoroba, em Maruim, certa noite do Ano Santo de 1950, olhava a lua cheia sentado no alpendre de sua casa, ao lado do amigo Daniel.
Sacristão em disponibilidade, sua fé em expansão se dividia entre Nossa Senhora da Boa Hora e Senhor dos Passos, padroeiros da cidade.
Enquanto contemplava o astro, agasalhado em sua tépida claridade, sentiu o coração dilatar-se com a resignação de um santo: estava convencido de que era a última vez que o via.
Abriu a camisa, alisou a barriga pejada de caramujos de esquistossomo, e disse a Daniel que ia morrer.
Não havia na voz qualquer sinal de medo; continuou fitando a lua como dois amantes que se entregam pelo olhar na hora da despedida.
O amigo afastou-se um pouco para encará-lo: – Que história é essa?! – É sério. Dr. Hilton Sá já avisou a minha mãe. Não vou durar um mês. – E você não está com medo?! – Medo de quê? É sina de família. Desde novinho que eu sei que a esquistossomose leva a gente cedo. Meu pai foi embora com vinte e cinco anos. Meus dois irmãos com menos de dez. Eu cheguei aos vinte e dois. Outra coisa: vou trocar o mangue pelo céu.
A iminente morte de Domício Borges foi recebida pelos conterrâneos com reações ambíguas: lamentações e tranquilidade, ainda que temporária. Por um período, ficariam livres das invencionices incendiárias de dona Santinha, que não saía da janela da casa, de cujo parapeito, acolchoado com duas pequenas almofadas, girava seu radar de calamidade captando o que havia de mais deletério e desagradável na vida dos habitantes do município. Tropeços veniais podiam ser por ela ampliados até a porta do inferno, arranjando-lhes versões devastadoras.
Dessa feita, encontrara páreo para sua maldade: um fato real e perturbador. Uma sentença de morte contra um inofensivo rapaz, querido por todos, assinada pelo sanitarista mais competente de Sergipe.
Já no começo da manhã seguinte, algumas pessoas se agruparam em frente da casa de Domício. Os sussurros não escondiam matizes de sentimentos ferozes: havia o temor de que o médico houvesse errado o diagnóstico. Domício Borges talvez vencesse a briga com os caramujos, e a vilã Santinha renasceria mais bruxa do que nunca.
Quando o condenado surgiu à porta, sorrindo, que decepção! Aqueles não eram modos de doente terminal! A frustração fez nascer o receio de que, daquela vez, o grande sanitarista começara a encolher. Esperavam um pé-na-cova cambaleando, olheiras de amêndoa. Aqui, ó! Quem se apresentou foi um sujeito sorrindo, sem ares de ter a cabeça metida na situação mais terrível na qual um ser humano pode estar.
Trouxeram-lhe uma cadeira. Domício colocou a peça em posição inversa, escanchou-se-lhe como quem monta cavalo, e cruzou os braços sobre o encosto. Observando os olhares exclamativos, pôs-se de pé num salto, desabotoou a camisa e expôs a barriga volumosa. Alívio geral. O parecer do médico não podia ser contradito. Nenhum homem sobreviveria carregando um bucho daqueles. Sereno e seguro, Domício respondia todas as perguntas, inclusive se Dr.Hilton dissera, mais ou menos – que ninguém é Deus -, o dia em que iria embarcar. – Ele falou a mãe que acha que não chego a janeiro, mas aí só O de cima sabe. Vejam aqui, e mostrou na enorme pança as veias azuis: – São os caminhos das cobrinhas, sorriu. – Alguns vasos sanguíneos tinham o calibre de bala de fuzil, tão intumescidos que, se pressionados, talvez estourassem rompendo a pele. As pessoas apalpavam as veias com cuidado, fazendo comentários: – Esta que passa aqui em riba do umbigo chega tá minando. – É o resto do baço – explicou Domício, com a ênfase entusiástica de quem exibe uma comenda.
Abandonava-se aos amaciamentos dos conterrâneos, atento a suas opiniões. – Mas quem precisa de baço? Seu Ulisso arrancou esse bicho tem mais de dez anos, e ainda faz fio – consolou alguém.- E, se acurarmos bem a vista – observou professor Ribas -, o lado direito do ventre sugere uma pasmosa protuberância. – É o fígado, professor, clareou Domício. Tem noites que ele cresce tanto que só consigo dormir de papo pro ar. – Meu filho – cochichou uma velha intemporal -, se encontrar Santo Antônio, diga que dê um jeito, pois Juca está bebendo cada vez mais, enquanto em casa falta tudo.
Dona Selda, mãe do rapaz, saiu do quarto chorosa, mas foi consolada com palavras de solidariedade compulsória, palmadinhas no ombro, comentários sobre santidade: – Os santos eram assim, por isso que ele não teme a morte. – ensinou a professora dona Riso, com certeza doutoral, enquanto revirava os olhos e se benzia constrangida com os olhares concupiscentes de um menino saído.
O prefeito Dan Ricardo, com pendor para projetos inoportunos, sugeriu uma quermesse intitulada "Prendas do Caramujo", a qual " não apenas se referiria à origem da doença de Domício, como arrecadaria dinheiro para salvar o histórico Gabinete de Leitura de Maruim", anos depois condenado a dupla serventia, porquanto bastante utilizado para bailes de misses.
A mãe do doente não queria esses chamegos, uma desconsideração ao filho nas últimas, mas Domício, de natureza complacente, convenceu-a de que não via por que passar o tempinho que lhe restava dentro de casa, ou sentado enquanto mãos alheias afagavam com o dedo indicador sua barriga, acompanhando o caminho das cobras. – Ele precisa de alegria, dona Selda – aconselhavam-na. O que pretendiam, realmente, era contrabalançar o prestígio religioso do Dr.Hilton Sá, já agora em busca de milagre em vez de remédio, contrapondo o santo esforço do médico a eventos mundanos.
Todas as tardes, ao aproximar-se a hora do Angelus, médico e enfermo dirigiam-se à matriz do Senhor dos Passos, onde permaneciam longo tempo ajoelhados, arrebatados pela fé e pelo cheiro de incenso. Os que os acompanhavam naquele ofício temiam justamente que o obstinado ritual religioso produzisse subitamente o milagre. Acalmavam a consciência alegando que o óbito tão aguardado não lhes traria qualquer remorso, porquanto a própria vítima estava conformadíssima com seu destino, compenetrada de sua missão, inclusive colocara-se à disposição de todos para pugnar por suas reivindicações junto à Corte Celestial, visando a resolver problemas cabeludos que grassavam aqui embaixo. Mas que Deus não tivesse tanta pressa, deixasse-o mais um tempo, sem melhora nem piora, até que a velha Santinha levasse a breca. Se não já a havia levado, pois nunca mais fora vista no seu posto de observação.
Quatro meses se passaram sem qualquer novidade na saúde de Domício. O adiamento do desenlace trouxe de volta a dúvida sobre os conhecimentos do médico. Pessoas inconformadas com a ausência de fuxicos começaram a espalhar que a barriga de Domício estaria diminuindo. A verdade era que o prazo para a morte havia expirado há três meses, e não se avistavam sinais de que estivesse próxima.
Aos poucos, a cidade começou a enjoar-se daquele tambor de estrias azuis. – Esse ainda vai enterrar muita gente – ressentiu-se um homem. – Dr. Hilton está gagá: aquela pança tá precisando é de óleo de rícino – tripudiou um intolerante. O desânimo diante da reversão da expectativa funesta criou hostilidades também contra Domício e sua mãe. Faziam-se piadas ridicularizando-os. O médico teve sua ciência arguída pelos cantos: afinal, que morte era aquela anunciada num diagnóstico incontrastável que nunca chegava?
Chegou. Dias mais adiante, no começo da tarde, Domício Borges, dona Selda e Dr.Hilton viajaram repentinamente numa ambulância para um hospital de Aracaju. A cidade que os hostilizara até aquele instante, quando seus habitantes souberam do ocorrido tacitamente concordaram em dirigir-se à igreja do Senhor do Passos onde realizariam um ato de contrição coletivo, um gesto edificante de arrependimento pelas ações e pensamentos jogados maldosamente contra Domício, dona Selda e Dr.Hilton, durante alguns meses.
Por volta das quatro horas da tarde, o vigário frei Eugênio, ainda castigado pelo excesso do pirão de peixe do almoço, foi ao centro do altar e anunciou o falecimento do ex-sacristão. Houve murmúrios, mas ninguém saiu da igreja. Uma ou outra voz de surdo quebrava o silêncio monacal.
Já era noite quando os arrependidos voltaram para suas casas.
Quando caminhavam pela Rua do Assovio, avistaram dona Santinha acomodada em seu posto, os cotovelos fincados nas almofadas do parapeito da janela, vendo-os passar.
* Paulo Fernando Morais é jornalista e escritor (pftmorais@ig.com.br)