CIÊNCIA AGRÍCOLA E SEGURANÇA ALIMENTAR (I)
Publicado em 15 de abril de 2023
Por Jornal Do Dia Se
Pedro Abel Vieira e Manoel Moacir Cosa Macêdo
A agricultura é uma atividade marcante na história da humanidade. Ela é parte do ciclo da evolução humana. De início, os humanos prospectaram as espécies acessíveis à sobrevivência, a seguir, usaram técnicas para cultivar a terra, produzir alimentos e energia para alimentar os trabalhadores e a revolução industrial. Nesse contexto, surgiram os excedentes e as trocas comerciais, ampliando o papel da agricultura nas atividades econômica e social. O cenário de fracasso da agricultura em ofertar alimento para uma população em crescimento geométrico, não foi confirmado. Ao contrário, a produção agrícola com o adjutório da ciência ofertam comida suficiente para alimentar uma população de mais de oito bilhões de pessoas.
A ciência agrícola brasileira nas últimas décadas possibilitou uma safra de grãos prevista para o corrente ano de trezentos milhões de toneladas de grãos. Uma produção sem precedentes na história nacional. Destaque para a tecnologia como o fator relevante no processo produtivo. A terra e o trabalho não são os fatores estratégicos na produção e produtividade das lavouras e criações, mas as inovações nas versões biológicas, químicas, mecânicas e organizacionais. A fome de trinta e três milhões de brasileiros e brasileiras, é decorrente da enorme e persistente desigualdade social, impedindo os pobres de comprarem comida. A miséria da insegurança alimentar alcança mais de cem milhões de nacionais.
De acordo com o relatório “Estado da Segurança Alimentar e Nutrição de 2022”, da ONU – Organização das Nações Unidas, o número de pessoas afetadas pela fome no mundo chegou a 828 milhões em 2021, um crescimento de 46 milhões de famintos em ralação a 2020.Mazela agravada pela pandemia da Covid-19 e pela guerra na Europa. Além dessa população com fome, 2,3 bilhões de pessoas, ou seja 29% da população global, estavam em insegurança alimentar em 2021. Outra gravidade anotada no referido relatório: 45 milhões de crianças menores de cinco anos sofriam definhamento, a forma mortal de desnutrição e risco de morte de crianças. Além disso, 149 milhões de crianças com similares idades, tiveram crescimento e desenvolvimento atrofiados devido a falta crônica de nutrientes essenciais em suas dietas.
A fome não é um pecado divino, mas causada pela concentração de renda em poucas mãos. Não se desconhece a redução da pobreza de 36% em 1990 para 10% em 2015. Em 2020, cerca de três bilhões de pessoas não podiam pagar por uma dieta saudável, isto significou 112 milhões a mais que em 2019. Contingência agravada pela inflação nos preços dos alimentos decorrentes dos impactos econômicos da pandemia de Covid-19 e da guerra na Ucrânia.
Entre as alternativas para a produção de alimentos, o que cabe ao setor agropecuário, tem sido efetivado: produção de alimentos baratos. Ainda, carece de atender as externalidades, a exemplo da mudança climática, do desmatamento, da perda de biodiversidade estratégica e do uso abusivo de agrotóxicos. A trajetória produtiva da agricultura está em mudança, pelas ameaças à sobrevivência da humanidade e pressões de consumidores nacionais e estrangeiros por alimentos saudáveis e proteção ao meio ambiente. A produção agrícola em seu início foi centrada no deslocamento da fronteira, pela expansão do uso da terra. Adiante, foi deslocada para a produtividade total dos fatores – PTF, a exemplo da irrigação e insumos intensivos em capital, advindos das inovações tecnológicas paridas nas organizações de ciência e tecnologia, no caso brasileiro, liderada pela EMBRAPA – Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária.
Na atualidade, a prioridade é produzir com sustentabilidade e consumir com saúde. Para tanto, o modo de produção agrícola, exige mudança de rumos. A vez é a produção de alimentos em quantidade, qualidade, sadios, baratos, nutritivos e sustentáveis. A fome não é determinista, ela tem causa e cura.
Nas décadas anteriores a 1990, a maior parte do crescimento da produção decorreu da intensificação do uso de insumos, porém, desde a década de 1990, o crescimento da PTF, em vez da acumulação de fatores (crescimento da terra, irrigação e outros insumos), foi responsável pela maior parte do aumento na produção agrícola mundial. No período mais recente (2011 a 2020), a PTF cresceu a uma taxa anual de 1,2%, respondendo por 58% do crescimento da produção agrícola.
Apesar das esperanças de que superada a pandemia a segurança alimentar começasse a melhorar, a fome mundial aumentou e a insegurança alimentar grave tornou-se mais prevalente, com 11,7% da população global enfrentando insegurança alimentar em níveis graves. O número de pessoas incapazes de pagar por uma dieta saudável em todo o mundo também aumentou em 112 milhões chegando a 3,1 bilhões. Essas são evidencias importantes de que as pessoas não conseguem acesso a alimentos seguros, nutritivos e suficientes.
Os vários estudos sobre a fome no mundo atual deixam claro que os esforços para acabar com a fome não foram tão bem-sucedidos. Após décadas de declínio constante, ela voltou a aumentar em 2015, dessa vez acrescida da desnutrição. As causas da fome no mundo também não estão associadas exclusivamente a falta de alimentos. A fome é multidimensional e dentre os principais fatores se destacam: a desigualdade social e a pobreza, os conflitos e as guerras, as crises econômicas e a má distribuição de alimentos. Além disso, a fome vem ganhando uma nova dimensão associada com o manejo inadequado dos recursos naturais e suas implicações sobre o clima e agravamento de fenômenos naturais como inundações e secas severas.
Para o diretor executivo do World Food Programme da ONU, David Beasley, o resultado desses números será a desestabilização global, fome e migração em massa em uma escala sem precedentes. Porem, os números apresentados pela ONU são contraditórios à evolução da produção per capita mundial de um cesto de alimentos considerados pela Foodand Agriculture Organization que inclui desde cereais até produtos animais, passando por frutas vegetais e produtos aquáticos, que variou de 402 para 532 kg per capita entre 1961 a 2020, com destaque após o ano de 1991quando a taxa de crescimento passou de 0,32 para 0,63 % ao ano. Corroborando o aumento na disponibilidade de alimentos, o Índice de Produção Bruta de Alimentos per capita (2014-2016 = 100), aumentou cerca de 50% entre 1960 a 2021 , notadamente após meados da década de 1990 quando o índice passou de 80 em 1995 para 104 em 2021. Merece destaque nessa evolução o Brasil cujo Índice passou de 33 em 1961 para 55 em 1993, chegando a 107 em 2021.
A questão contida na fala de Beasley é: embora a luta contra a fome tenha estagnado nos últimos anos, evidências sugerem que o problema atual não é a falta de alimentos. Pelo contrário, muitos países enfrentam o problema duplo, da má nutrição. Além do definhamento ocasionado pela fome, a obesidade está aumentando em todas as regiões do globo, passando de 12% para 13%entre 2012 a 2016, o último ano para o qual há dados disponíveis.
As dietas em todo o mundo estão longe de ser saudáveis e não melhoraram na última década. A ingestão de frutas e vegetais ainda está cerca de 50% abaixo do considerado saudável e a ingestão de leguminosas e nozes está mais de dois terços abaixo das duas porções recomendadas por dia. Por outro lado, o consumo de carnes vermelhas e processadas chegou a quase cinco vezes o máximo recomendável de uma porção por semana, enquanto o consumo de bebidas açucaradas, que não são recomendadas em nenhuma quantidade, também está aumentando. Apesar de alguma variação entre as regiões, nenhuma região do planeta atende às recomendações para dietas saudáveis. Os países de baixa renda continuam a ter a menor ingestão de alimentos essenciais para a saúde, como frutas e vegetais, e os mais altos níveis de baixo peso, enquanto os países de alta renda têm a maior ingestão de alimentos com alto impacto na saúde e no meio ambiente, incluindo carne vermelha, carne processada e laticínios, e os níveis mais altos de sobrepeso e obesidade.
No Brasil, cerca de 2% das crianças com menos de cinco anos de idade têm déficit de peso, enquanto 8% têm sobrepeso. No quadro da má nutrição produzida pela insegurança alimentar, os grupos mais vulneráveis não têm acesso ao mínimo de três refeições diárias enquanto os grupos que ainda tem acesso aos alimentos consomem ultraprocessados e açucarados. Nos últimos sete anos, o consumo de alimentos ultraprocessados na faixa etária de 2 a 19 anos superou 80%.
As evidências sugerem que, se os governos redirecionarem os recursos para priorizar os consumidores de alimentos e incentivar a produção, o fornecimento e o consumo sustentáveis de alimentos nutritivos, eles ajudarão a tornar as dietas saudáveis menos dispendiosas e mais acessíveis para todos. Afinal, não é por caso que o segundo Objetivo do Desenvolvimento Sustentável proposto pela ONU é: acabar com a fome, alcançar a segurança alimentar e melhoria da nutrição e promover a agricultura sustentável. Afinal, garantir que todas as pessoas tenham acesso à alimentação de qualidade é imprescindível para a construção de um futuro mais justo e equilibrado para o planeta e seus habitantes, o que implica em agricultura ambientalmente sustentável. Esses são desafios que um país como o Brasil, tido como a ‘fonte estratégica de alimentos para a humanidade’ e a ‘potencia ambiental do planeta’, deve levar a serio. Para tanto, nos próximos tópicos serão discutidos: i) os avanços da agricultura mundial e no Brasil e ii) a fome com ênfase no Brasil. Esses tópicos embasarão as discussões finais que indicarão o futuro papel da ciência no combate a fome.
Pedro Abel Vieira e Manoel Moacir Cosa Macêdo são engenheiros agrônomos