Em paz com os mortos.
O cemitério de Jorge Amado
Publicado em 24 de fevereiro de 2022
Por Jornal Do Dia Se
Rian Santos
riansantos@jornaldodiase.com.br
Jorge Amado tinha um modo muito particular de lidar com os desafetos. Quando um tipo ia “além de todas as medidas” e, de fato, o ofendia, o escritor baiano não dizia uma palavra. O sujeito seguia o próprio rumo, em busca de emprego para a língua ferina. Antes de sumir numa ladeira torta, ao dobrar a primeira esquina, entretanto, já não passava de uma alma penada, uma sombra, um fantasma, um defunto, um corpo sem vida.
Tenho me empenhado em construir um cemitério parecido, decidido a mandar para a vala comum, sem a homenagem breve de uma lápide, os conhecidos indignos da amizade. Em lugar das flores roxas paridas pelo rancor, deixo a grama crescer ao pé da cova funda. Tomado pelo mato, o coração selvagem bate mais leve, mais forte, quase a ponto de arrebentar-me o peito.
Vivo, assim, em paz com todos os mortos. Largados no escuro, a sete palmos do chão, as feições apagadas pelo alheamento já não evoca a traição. A mim, não me devem nada. Nem o dinheiro eventualmente emprestado, a cerveja derramada, o favor de bom grado, o socorro, nada, não quero saber de gratidão.
Acontece, por vezes, de um cumprimento, em contexto de sociedade, exigir a formalidade de uma resposta amena. Jorge Amado acenava, então, muito educado, sem fazer caso do gesto. O sujeito talvez não soubesse, mas já não dispunha de meios para abrir feridas, ensaiar golpes desleais. Era morto e enterrado. Não passava de um defunto.