Um filme digno
Uma escolha estúpida
Publicado em 18 de fevereiro de 2022
Por Jornal Do Dia Se
Rian Santos
riansantos@jornaldodiase.com.br
Confiro ‘A filha perdida’, o filme de longa me tragem produzido pela Netflix, a partir da obra monumental de Elena Ferrante. O trabalho da diretora Maggie Gyllenhaal é dos mais dignos. Ainda assim, obrigado a optar entre um e outro (uma escolha estúpida, aliás), ficaria com as palavras deitadas sobre o papel. As imagens evocadas por força de sugestão permanecem com o leitor até o fim da vida.
A série napolitana de Elena Ferrante, uma escritora sem rosto conhecido, foi capaz de inflamar a minha imaginação por meses a fio, ainda hoje. Lá se vão quase duas mil páginas, divididas em quatro volumes. Um calhamaço que ainda assim não contem a extensão completa de tanto fascínio.
O mistério biográfico pairando sobre a assinatura Ferrante, de um italiano musical, próprio das grandes óperas, encontra ressonância na história de uma infância miserável, sujeita às tensões políticas do pós guerra. O bairro velho, onde a protagonista nasce e cresce, espelhando-se numa amiga, inconsciente das engrenagens que movem o mundo, até virar gente, é palco de um espetáculo mesquinho, uma luta de vida e morte entre as necessidades mais prementes da sobrevivência e a vocação para a beleza em ambiente agreste.
Para Ferrante, a violência e a grosseria, a brutalidade, correspondem ao exato oposto da Cultura. Há, naturalmente, quem abra a boca cheia de palavras difíceis para defender as ideias mais ignóbeis, de modo afetado. Mas estes são intelectuais, jamais foram tocados de verdade pela pulsão nas entrelinhas de um romance. Não por acaso, o dialeto dos pobres soa incompreensível aos ouvidos limpos dos italianos de boa educação. Aqui, mais que o dinheiro, a língua é instrumento de poder, uma fissura, um território bem demarcado vedado aos bárbaros, impedido aos subalternos.
Entre o caos e a ordem, num insuspeito ponto de intersecção, resta o sexo, um subterfúgio. Os apetites do corpo propiciam toda a sorte de experiências, motivo da mais completa alegria e também da subordinação mais asquerosa. Na intimidade de homem e mulher, revela-se o que escapa à linguagem, com a devoção, a fúria e o egoísmo de um bicho.