Segunda, 17 De Março De 2025
       
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Espelho, espelho meu


Publicado em 19 de fevereiro de 2022
Por Jornal Do Dia Se


Tudo certo, tudo lindo (Dudu Portela)

Rian Santos
riansantos@jornaldodiase.com.br

Para mim, todo homem livre temo direito sagrado de viver como bem entende, sem lenço, sem documento. Sem medo de ser feliz. Mas o pacto social de faz exigências. Ao perder a Carteira de Identidade, há alguns anos, fui obrigado a declarar o contratempo em Boletim de Ocorrência. Na delegacia, depois das perguntas usuais, o escrivão me olhou de alto a baixo e tascou no formulário: Pardo.
Eu fiquei estupefato. O meganha não sabia, mas estudei a vida inteira em escola particular, os olhos da cara de papai e mamãe. Educação pública, só conheci a de terceiro grau, uma farra! Contra todas as aparências, jamais corri atrás de emprego, bati ponto, estudei para concurso. A minha vida inteira fui um privilegiado. Nada disso o fulano sabia. Para ele – coberto de razão, aliás -, eu era só mais um mestiço, essa jabuticaba racial, um homem pardo.
Assim como eu, muita gente começa a se olhar no espelho, cá pelas bandas da Atalaia.
Tudo certo, tudo lindo. Importa aqui, no entanto, perceber como tal afirmação se traduz em linguagem. A discografia da cantora Héloa, por exemplo, meio macumbeira, meio índia, ganhou novo impulso desde quando ela resolveu mergulhar em águas ancestrais.

De repente, há urgência – O primeiro registro assinado por Héloa, o EP ‘Solta’ (2013), reuniu alguns dos músicos mais ativos na cena local em um esforço de afirmação que resultou precipitado em diverso aspectos, com o mérito inegável de prevenir os desavisados sobre a existência da moça.
Depois, já de mala e cuia na desvairada, ela voltou à carga com o álbum ‘Eu’ (2016). O disco contou com o balanço esperto de antes e um pouco mais de tutano. A mão do produtor Daniel Groove, no entanto, pesou demais. Há quem diga que o sujeito se pronunciou mais alto do que a própria cantora.
‘Opará’ (2019), ao contrário, é talvez o primeiro trabalho realmente autoral de Héloa. Aqui, a sua voz soa mais alto, como tem de ser. Ela manda, desmanda, assume todos os riscos. O momento, aliás, não poderia ser mais oportuno.
A agenda predatória do governo federal colocou a pauta ambiental no centro do debate político. O desmatamento acelerado da Amazônia, por exemplo, é condenado por algumas das maiores potências econômicas do mundo, com o poder de impor sanções comerciais ao Brasil. Do São Francisco, o rio Opará da tribo Kariri-Xocó, no entanto, pouco se fala. Assoreado, sem volume para movimentar as turbinas das usinas hidrelétricas e ainda prover o sustento das comunidades banhadas por suas águas, o Velho Chico agoniza sob o arbítrio de podres poderes, em função do acúmulo do vil metal.

Pois bem. Héloa esteve lá, de corpo e alma. ‘Opará’ evoca as divindades da água doce para entoar um verdadeiro grito de resistência em favor de tudo o quanto tem raiz, vibra, respira, emana, transborda, flui.

Odocyá – O acerto da fórmula continua a render bons frutos. A semana passada, Héloa voltou à carga, muito bem acompanhada pela voz forte de uma sumidade – ninguém menos do que Lia de Itamaracá. ‘Odocyá’, um single, exalta o mar em versos de mantra e ritual. A canção ainda evoca um canto tradicional da aldeia Kariri-Xocó, entoado pelo Grupo de mulheres Tidzy Sabuká.
“O canto anuncia a chegada da sereia, imaginário também associado à figura de Iemanjá no Brasil. Para as mulheres da aldeia, essa representação também se associa a Iara, deusa das águas, cultuada tradicionalmente por vários povos indígenas ribeirinhos, pelo nordeste”.
Aqui, não importa alinhavar considerações de ordem judicativa, a fim de avalizar o investimento criativo de Héloa. Isso é lá com o prezado público. Convém festejar, antes de tudo, o feliz encontro de uma artista com as próprias feições, com a própria história. Mais e mais, eis um dado positivo, os tambores da aldeia acordam e fazem festa para a própria verdade.
‘Odocyá’ antecipa o álbum ‘Yidé’, a ser lançado nos próximos meses pelo selo Candyall Music, com produção de Yuri Queiroga e Carlinhos Brown.

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