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Morte de gestantes


Publicado em 20 de setembro de 2024
Por Jornal Do Dia Se


* Urariano Mota
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Perdido eu estava até há pouco em uma selva escura. Quero dizer, eu estava até agora sem saber sobre o que escrever, mas me iluminou esta notícia que acabo de ler no Diário de Pernambuco: Lula se emociona e lembra morte de esposa ao anunciar apoio para gestantes
O presidente citou a morte de sua primeira esposa ao anunciar programa para melhorar o atendimento médico a grávidas.
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva se emocionou nesta quinta-feira (12/9) ao comentar a morte de sua primeira esposa e de seu filho no parto, ao anunciar programa voltado para gestantes. Em discurso, o petista disse ter certeza de que a morte foi causada ‘por relaxamento’.
‘Cheguei no hospital, encontrei minha mulher morta e meu filho morto. Eu tenho certeza absoluta que foi relaxamento, que foi falta de trato. Porque as pessoas pobres, muitas vezes, são tratadas como se fossem pessoas de segunda categoria'”
Então me veio como uma pancada uma lembrança de trauma que me acompanha desde a mais frágil infância, quando eu estava com 8 anos de idade e perdi a minha mãe “que morreu de parto”, como se dizia no Recife em 1958. E só recentemente pude notar que existe uma linha que unifica os meus romances, quando escrevo “Soledad no Recife” e “O filho renegado de Deus”. Nesses romances, uma brava é morta com o feto no ventre. Assim foi com Soledad Barrett em 1973, assim foi com Maria, eterna no Recife em 1958. Assim tem sido, até hoje, com as perdas de vidas de mulheres do povo. Ainda agora mulheres continuam a ter a destruição de suas vidas por desprezo, por desprezo, por desprezo, por desprezo, ao infinito dos infernos.
Com o Presidente Lula nesta quinta-feira temos:
“O chefe do Executivo participou hoje, em Belford Roxo, Rio de Janeiro, do lançamento da Rede Alyne, um programa que visa melhorar o cuidado com a saúde das grávidas. Segundo o governo, a primeira fase de implementação terá investimento de R$ 4,85 bilhões, beneficiando 30 milhões de mulheres”.
Ah, Maria, se pudesses ter atravessado o tempo da infâmia em Água Fria e s ressuscitado em 12 de setembro de 2024! Mas não, estavas em dezembro de 1958, e eu apenas pude escrever em “O filho renegado de Deus” esta terrível recuperação:
“Ele estava na cama da mãe, onde ficara a dormir desde a madrugada, quando ela saiu de casa. Esse era um plano de corte em sua memória. Ele não queria lembrar, e por isso não lembraria os momentos que antecederam a saída de Maria para a maternidade. Havia cantos e pessoas na salinha, no quartinho, que estavam escondidos em um desvão impossível, do que lhe ficara da noite anterior. No quartinho entravam e saíam mulheres, isso ele mal lembrava. Mal lembrava ainda o choro, o pedido da sua mãe, que, apesar de altiva, determinada, naquela hora suplicava entre gemidos:
– Eu quero morrer com o meu filho.
Isso ele não queria nem podia lembrar. Talvez porque mesmo sem ver no quarto aquele adorado rosto a pedir, a face atravessava a parede, e pôde ver com os olhos da imaginação a face bela da mãe toda úmida, a balançar o maravilhoso e gordo rosto a falar:
– Não, não, eu não quero ir para a maternidade. Eu sei que vou morrer. Eu quero morrer aqui com o meu filho.
Isso ele ouviu, com o começo da percepção a que ficaria reduzido, ver, sentir, falar com os ouvidos. E por assim vê-la, ah, maldição de palavras que não expressam, via com timidez, que é o outro nome de impotência, a sua mãe suada, muito suada, alagada em suor no forno daquele quartinho, a chorar em angústia, na sua melhor camisola, pregada ao ventre inchado. Cercada de mulheres, de vizinhas, que mais pareciam urubus, com a solidariedade dos abutres que esperam a agonia, ela não parava de repetir:
– Eu quero morrer com meu filho.
As respostas a esse pedido eram um misto de fala bondosa e de arbitrariedade, daquele abuso covarde que os saudáveis têm para com os agonizantes:
– Maria, você vai.
Falavam, mas tudo, é certo, mascarado em um tom meigo, de blandícia, beatífico como as beatas de igreja costumam falar, quando se referem às virtudes e coisas santas:
– Na maternidade, você fica boazinha.
Ao que a mãe, crendo-se apenas com aquelas aves de agouro a rondá-la, respondia sem consolo, de modo mais franco:
– Eu sei que vou morrer. Eu quero ficar com meu filho.
Isso ele ouviu, escutou e viu, mas lhe chegava feito uma língua arcaica, uma fala de escravos na cidade soterrada de Pompeia. Porque ouvia, escutava e duro era alcançar o entendimento. Lembra, lembraria as palavras que se repetiam em um mantra, de invocação ou anúncio da desgraça que a razão confortável não podia compreender: “eu quero morrer com o meu filho, eu quero morrer com o meu filho”, aos soluços, do outro lado da parede. Até que chegou o pai, o homem. Com que ironia de sentido ele recordaria o termo, o homem. Diria melhor, com o significado dos anos de luta contra a ditadura, no medo, doze anos adiante: “chegou a repressão, chegou a polícia, aí vem o torturador”. Pois quando chegou o homem, aquele que é temido poder de destruição, todas as vizinhas se calaram, inclusive os abutres, que faziam o papel de carpideiras antes do corpo virar defunto. E quando o homem chegou, entrou no quartinho abrupto, sem pedir licença, pois estava na sua casa, naquilo que chamava a sua casa. Ele entrou, no próprio desejo, vestido na pessoa do Anjo Salvador, mas para todos entrou com o império de Lúcifer, de um Lúcifer que jamais tem dúvida sobre os infelizes que tem sob domínio: são seus, estão seus, ele usa, abusa e pune. Aos olhos aterrorizados do menino parecia que ali chegava a definição do destino. E com os seus olhos de ouvido viu:
– Ela vai para a maternidade. Agora.
Maria aumentou mais o seu pranto. Se antes estava em desvantagem, nesta hora, que não podia se levantar e partir para cima, ainda mais miserável se encontrava. E já sem forças, ainda assim murmurava:
– Eu quero morrer com meu filho.
Filadelfo não a ouviu nem a considerou. Do que reclamava a mulher? Jimeralto era só um menino, mas nem por isso conviveria bem com a lembrança de que não fosse mais que um menino subjugado ante forças maiores, naquele momento. De não obedecer àquele raio de segundo único em que poderia afrontar o despotismo do pai:
– Que autoridade você tem de matar minha mãe? Venha para mim.
Mas Jimeralto era só um menino. De que adiantava lamentar o herói que não fora, o herói impossível que poderia resolver a dor de Maria? Os seus grãos de valor, assemelhados a grãos de ouro, se revelaram grãos de areia. Então veio o instante de que não se lembrava, o instante que nunca desejou se lembrar, que tão oculto e marcado não lembrava, uma coisa que houve mas não aconteceu, porque não podia nunca acontecer: Maria passou pela sala, onde ele se encontrava, levada em uma cadeira e muitos braços. Então ele não pôde ver, não pôde ouvir, porque ao passar por ele Maria não mais gemeu, calou-se, quis-lhe sorrir. Mas tão agoniada ia que apenas lhe jogou um último olhar, um olhar em que a esclerótica dos olhos veio menor que a pupila. Era um olhar de Maria porque estava em seu rosto, mas ali já não estava Maria. Passou outra. Passou outra mulher, à procura do filho. E grande e feroz foi a dor do menino.”
Bravo, Presidente Lula! Gerações de mulheres humilhadas te saúdam.
* Urariano Mota, escritor e jornalista. Autor do Dicionário Amoroso do Recife, Soledad no Recife, O filho renegado de Deus e A mais longa duração da juventude (traduzido para o inglês como Never-Ending Youth). Colunista do Portal Vermelho e do Brasil 247. Colaborador do Jornal GGN.
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