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O improvável coronel Gaspar Ramalho


Publicado em 12 de outubro de 2013
Por Jornal Do Dia


* Paulo Fernando Teles Morais

Numa manhã do verão de 1952, Coronel Gaspar Ramalho saiu do escritório de sua usina de cana-de-açúcar Garção na sede do município de Aguada onde estava localizada e entrou no prédio dos Correios, que ficava defronte. Atravessou vinte metros de calçamento de lajotas, sob silêncio e curiosidade dos que estavam por ali.  

De repente, o trecho da rua entre a repartição e a Praça da Matriz ficou assim de gente.  Que teria ido fazer o Coronel, e ainda por cima caminhando?, perguntavam-se.  Botar, apanhar carta, nunca. Trabalho raso, insultuoso para um homem de genealogia polvilhada de comendas, tarefa para o estafeta Juviano.  Poucos minutos depois, com olhar transportado, voltou cumprimentando o ajuntamento humano com hesitante flexão da cabeça. Verão, vento. O linho branco S-120 do seu terno drapejava: era a bandeira do Garção.

 O inesperado era que ele andava, e inteiriçado.  Não que o achassem incapaz de fazê-lo, aos 64 anos de idade, ainda mais em se tratando de distância que podia ser medida a palmos, mas teria um caminhar bambo, de pernas frouxas, músculos atrofiados pela inércia, e no entanto ei-lo de passos firmes, lombo avultado. Naquele singularíssimo dia revelador e de sol ressecante, o tom exagerado das conversas soaria mais apropriado em narrativas épicas.  A estupefação desmedida nasceu das cogitações apequenadas das pessoas que assistiram à cena; segundo elas dinheiro e poder não davam completitude a ninguém se lhe faltasse estampa física, menos ainda ao franzino Coronel, sobre o qual se levantavam suspeições de viver entalado num organismo frágil, incapaz de executar ofícios árduos, entre eles a prosaica e remota atividade humana de caminhar. O acontecimento invulgar, que foi nesse grau que o viram e o feito propagado, levou os assistentes ao delírio de difundir, que, mesmo caminhando, os pés dele não tocaram o chão.

Fato raríssimo ver o Coronel atendendo às necessidades básicas do ser humano, como caminhar, comer, dormir, ou apanhar no Correio, como naquele dia, a carta de um filho.  Estava sempre entocado no seu carro Pontiac branco, escondido atrás das cortinas que vedavam as janelas; tampouco ficava distante da cadeira de vime amarelo-ouro do escritório da usina, com assento acolchoado, os gomos à base de látex.  Todo o aparato que o mantinha isolado, excêntrico, se assemelhava a uma redoma de cristal que se fragmentou, ao caminhar com naturalidade e equilíbrio.  A notícia sobre o caminheiro hirto, firme como os mourões dos currais do Garção, alastrou-se pelos municípios vizinhos.

Mas o Coronel continuava o mesmo, isto é, diferente. Com ele eram habituais as manifestações amistosas: cordialidade, generosidade, colóquios paternais com os empregados, principalmente com os resistentes à disciplina. Enquanto era ocorrente nas outras usinas um coronel transformar a vida de alguém num inferno, no Garção predominava a compreensão, tudo vinha acompanhado de matizes surpreendentes, como, por exemplo, presentear funcionários em maio ou setembro, sem lhes dizer por quê, e tornar a fazê-lo nas comemorações natalinas. Nada era direto nesse homem de vida em curvas, provocador de perplexidades. O rol de complacências não significava porta aberta para a anarquia. Como as moendas da usina, tudo funcionava nos eixos. O fato de ter andado como qualquer um teria sido uma forma de acomodar a confusão mental que desassossegava o povo, indefinido entre sua condição de vivente mortal ou semideus.

Nos idos de que estamos falando, começo da década de 50, Coronel Ramalho foi sempre malvisto entre os de sua condição social. Solitário, discreto, sentimentos lacrados, comportamento original, distribuía bondades da alma como as que se espera de um frade penitente, cerimonioso até com o filho Jairo, que chegaria ao Garção dali a dois meses, formado em engenharia civil.  Antes de concluir o curso, no meio e no final do ano vinha passar as férias com o pai. Os habitantes da usina não conheciam tempo melhor. O herdeiro se soltava com eles, mas não deixava esquecerem o tamanho da liberdade que lhes cabia, sem tomar qualquer atitude que humilhasse imprudentes ou adiantados.  

Os senhores de engenho de então, exceções de regra, esticavam as prerrogativas que lhes eram reconhecidas como hereditárias e indissolúveis, e o povo os temia e venerava como se vivesse diante de uma abstração deificada que promovia os filhos, os irmãos inapetentes, ineptos, frígidos a ferozes indivíduos, aos quais se deviam lealdade e obediência ilimitadas.  Tais famílias de linhagem de grife, contaminadas pela insensibilidade transmitida de geração a geração, por não reconhecerem nenhuma instituição que pudesse estar acima da delas, o poder econômico, arrogavam-se direito ao risco de transformar bobos em reis. As travessuras desses duendes aliadas ao instinto lascivo incontrolável, muitas vezes desvios da consanguinidade frequente, eram fonte de zombaria entre portas fechadas. Sabendo-se que a sucessão nas empresas era um corrimão familiar por onde deslizava a parentela, marca de honra, tabu inviolável, muitos cabeças-fracas chegaram ao trono e anos depois as explodiram e com elas foram calcinados.

Seis anos antes, após a morte da esposa Dona Zailde, Coronel Ramalho assestara o olhar em Berenice, filha de Belo, o balanceiro do engenho, uma menina que estava virando mulher sem intervalo.  Empurrado por toques do coração, prometeu aos pais responsabilizar-se pela educação da "jovem sem propensão para viver em senzala". E foi sob esse compromisso, no começo rejeitado pelos pais por formalidade e receio do troco, que Berenice foi estudar e voltou para a usina com o diploma do curso pedagógico, depois de três anos de estudos no Colégio Nossa Senhora de Lourdes, em Aracaju, e em seguida nomeada pelo Coronel Ramalho diretora do Grupo Escolar do Garção.

Naquele ano de 52, o cerco invisível do Coronel Gaspar Ramalho à jovem e bonita professora deixou-o num estado de arrebatamento que, mais ampliado, o faria realmente levitar. Escrupuloso, a paixão comprimida, insondável até o mais alto grau da dissimulação, não profanaria um Breviário, enquanto os personagens do Decamerão e suas peripécias voluptuosas estariam bem representados se trocassem de lugar com os outros coronéis de engenho e suas estratégias de conquistas amorosas, alcançadas sob sol a pino, quanto mais amantes mais prestígio, e da maneira mais desrespeitosa aplacavam a congênita intemperança lúbrica.

Muitos pais se sentiam honrados com a ronda sensual desses senhores às suas filhas, enquanto outros mais desafortunados, sedentos de vida mansa, um cercado com uma vaquinha de leite, dinheirinho para comprar peças de chita, mescla e cretone, chegavam à vileza de fechar transações depois que, por falsa distração, deixavam cair aos pés dos emissários dos vilões brasonados fotos delas tomando banho de rio em pelo. Ouvimos isso como se fosse lenda. Mas são centenas de compêndios de histórias verdadeiras sujas, aviltantes, socados nas estantes das bibliotecas públicas e particulares.

Extenuado de tanto fingimento para despistar a pulsação amorosa, Coronel Gaspar Ramalho adotou o estilo dos círculos concêntricos de forma invertida, começando pelas circunferências maiores, em sua tática de conquistador.  Uma espécie de peru geômetra. Arrodeava Berenice, fazendo voltas em torno dela tão distantes que não conseguia vê-la. Poucos dias antes da chegada do filho, foi até o Grupo, sempre no Pontiac, com a justificativa de avaliar o nível de aprendizagem; pediu desculpas aos professores por estar ali, reconhecia-lhes a competência, mas era uma oportunidade de recordar seu tempo de aluno daquela mesma escola fundada pelo pai. O intento, sem dúvida, era ver Berenice, adorá-la através dos cadernos, dos livros, das carteiras, dos alunos. Passou-lhe um olhar furtivo, tão curto e ligeiro que dela não enxergou além de um vulto difuso, ainda bem que nenhum dos presentes percebeu, exceto ela própria soprada pelo instinto.

Ao sair da escola, tocou para o engenho, mas antes passou pela balança, falou com Belo sobre serviços, viu nele traços que lembrariam a filha se fosse caricaturada, e em seguida, ao despedir-se do empregado, como alguém que não sabe o atalho que pega, pediu ao motorista que tomasse a direção da casa-grande esquecido de que seu destino era outro.

À noite , na varanda do piso superior do sobrado, entregou-se à procura de uma saída daquele labirinto sentimental sem provocar escândalo nem contrariar o filho.  Apesar dos pontos em comum que os tornavam muito parecidos, simples e tolerantes, seria compreensível Jairinho discordar da escolha, pelas diferenças de idade, de raiz e de vida. Mas o Coronel julgava-se adestrado para diluir a opinião filial, sem azedar a relação entre eles.

Nos dias seguintes, enquanto elaborava soluções honrosas que legitimassem sem traumas a pretendida união com Berenice, encomendou à Galeria Cruzeiro, em Aracaju, a única com seção de música erudita, a ópera Nabucodonosor, de Verdi, sua preferida. Mais um fosso a separá-lo da sua casta: um coronel de engenho ouvinte de música clássica. A ópera do divino italiano e o filho chegaram no mesmo dia. Duas alegrias de tamanho igual deixaram-no quase de rosto polido e pensamentos excitados que não sabiam distinguir a coceira da dor, se sentiu flutuando no céu, mas notava que ainda era um céu com fumaça.

Pediu a Juviano para aquela noite um alto-falante no largo do engenho. Jairinho achou interessante a ideia do pai, cuidou de detalhes técnicos para o som não sair engasgado, tudo por conta do que imaginava ser o jeito de o Coronel demonstrar contentamento pela chegada dele, com diploma e anel no dedo.

Estirados em espreguiçadeiras na varanda de cima, noite limpa de verão, Coronel Ramalho e Jairo não encontrariam maior conforto num camarote ou frisa do Scala de Milão. Ouvindo a ópera, quando o coro dos hebreus no cativeiro começou a cantar a pungente Vai, Pensamento…(Va, Pensiero), e a inefável melodia reboou no Garção e bem longe dali, Coronel Gaspar Ramalho encolheu-se , sentiu os olhos umedecerem.  Escondeu o rosto nas mãos, maldisse a correria dos anos, e avaliou o custo de uma vida honesta. Ao lado dele, Jairo percebeu a emoção do pai, e temeu pela conversa que teria com ele no dia seguinte sobre Berenice, com quem vinha se correspondendo nos últimos dois meses.

Numa casa humilde do engenho , ouvindo a mesma melodia que corria no seu coração como um rio de mel, a jovem chegou à janela e avistou uma única lâmpada acesa na varanda do sobrado. Não dava para vê-los, mas sabia que lá estavam pai e filho. O coração acelerou. Depois, girou o olhar pela senzala, as casas já fechadas, luzes esvaecidas denunciavam movimento no interior de algumas delas. Mais longe, avistava-se nas fazendas do Garção a claridade oscilante dos candeeiros.

Fechou a janela. Entrou no quarto, sentou-se na cama. Não podia dormir. O pensamento dividido entre a música, o pai e o filho esgotara-lhe o sono.

Coronel Ramalho e Jairo não trocaram uma única palavra, até que a ópera acabou. Silêncio no céu e na terra. Entreolharam-se, por instantes. No íntimo de cada um a necessidade de abrir-se com o outro. Tacitamente, deixaram o mal-estar para o dia seguinte, deram-se boa-noite, e entraram.

* Paulo Fernando Teles Morais é jornalista e escritor (pftmorais@ig.com.br)

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