Quinta, 16 De Janeiro De 2025
       
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O matador de galo


Publicado em 15 de novembro de 2014
Por Jornal Do Dia


* Paulo Fernando  Morais

Eram quatro horas da manhã, quando Camilo Ramos se levantou para ir matar o galo. Chovia muito sobre o município de Rosário. O Siriri, seu rio mais volumoso, subiu seu leito escalando aos pulos a garganta entre dois morros, num dos quais cochila em sua chapada o povoado Camé.
O açoite do vento, as extensas cortinas de água que desciam incessantemente não constituíam motivo bastante para Camilo desfazer um trato. Se nunca falhara, não seria agora com os cabelos brancos e os nervos mais sensíveis. Determinado a sair de casa, teria encontrado maior razão se soubesse que dr. Brito, dono do galo, não havia encontrado melhor gabolice para fanfarrear nos botecos: contratei Camilo Ramos, o melhor sangrador de capão destas bandas,  propalava batendo no peito, com fervor boêmio.

A mulher quando o viu mexendo nas coisas provocou-o: já vai adular? Ele, adulador! Vandete queimava de ciúme: – Não há ninguém em cima desta terra que mereça paga igual ao seu sacrifício: sair de casa de madrugada, enquanto o mundo se afoga. Volte pra cama, e vamos morrer por último. O Siriri vai ter que arrumar água de cinco invernos pra subir até aqui. – A conversa maneirosa mitigou a agressão inicial. Camilo não ficou ressentido, podia perdoá-la, sabia que o hostilizava para chamar sua atenção, dizer-lhe que ainda estava viva e que o amava sem freios. Era isto: o transbordo de um sentimento que nele estava secando. Por instantes, quis abraçá-la, mas o momento de esfriar-lhe os calores não era aquele. Não rompia compromisso.
Ao sair, mal enxergando as casas do povoado que se afundavam no aguaceiro, Camilo Ramos avaliou melhor o juízo que vinha fazendo de si próprio, por causa da canseira dos anos, e a pouca correspondência ao ardor fogoso de Vandete. Para ele, àquela altura da vida, os exercícios corporais de afetos prazerosos não passavam de um dever maçante; felizmente ainda tinha fôlego.

Contar-se-iam nos dedos de uma mão os homens que teriam coragem de pular da cama àquela hora para enfrentar uma tromba d’água, ainda que fosse para matar um capão do dr.Brito. Este fanfarrão inflado de parrança fora servidor público, não constituíra família; considerado doutor pela estampa, a cor branca da pele, e a língua solta, conseguira aposentar-se por invalidez ligeiramente prevista. Adquirira um sítio nos arredores do Camé, e nele se instalara como um soberano. Dono de uma alma distraída e perdulária, arrumara o lugar certo para esquecer seus fracassos bravateando no meio de um povo pobre e humilde, de crença fácil e compreensão indigente.
Camilo Ramos agora deslizava no massapê. Para justificar as vergastadas de chuva no lombo, flertou com a fantasia de um dr.Brito na medida certa, merecedor de que um homem consumisse tamanho esforço para sangrar e temperar um galo.
O devaneio indulgente não durou uma pancada de água mais forte. Foi a conta para sentir-se um tolo encharcado, constatação humilhante, que, no entanto,  não o impediu de esticar o passo para chegar no horário combinado: cinco horas da manhã.

Entreviu um vulto na porta de uma casa acenando-lhe. Era mestre Durval, o funileiro. Chamou Camilo para entrar. – Pra onde vai debaixo desse toró, caboclo? Entre logo, homem. – Mestre Durval, estou com pressa; tenho serviço me esperando. – É o galo? – Como é que o mestre sabe?! – Foi a conversa que rolou ontem. – Durval era parecido por dentro com Camilo Ramos: desconfiado, o mesmo ar espantado e cuidadoso de sobrevivente. – É isso mesmo: vou sangrar e preparar o galo do dr.Brito.  – Chegue então mais pra dentro. Venha me contar como foi a transação. –  É o horário, mestre. Depois  a gente conversa. Não houve transação; coisa só de confiança, acho que ele merece.  –  Sossegue. O horário não tem mais sentido. Sente aí. Você é bom demais, Camilo…  – Não sou não. É que homem de nossa marca só caminha em estrada, deixa os atalhos pra quem é preguiçoso. Mas o que foi que houve, mestre? – Vou-lhe contar: o galo já morreu! Um capão de seis quilos sangrado na boca da noite em cima do balcão de Sinhô, que até me deu um pedaço, mas não aceitei, porque sabia do combinado. Uma desfeita do forasteiro. O tal bebia no gargalo, e dançava com as asas escanchadas nos ombros de duas raparigas. Quando a bebida foi diminuindo mandou Zé Coió apanhar mais pinga e tripa de porco lá no Rosário. A coisa ainda deve estar fervendo.
Camilo Ramos sentiu o corpo desequilibrar. Se era mestre Durval quem estava contando não havia reparo.  Levantou-se; parou um instante coçando a testa. Durval, calado, deixava a onda de vingança tomar o corpo do outro. Camilo apertou-lhe a mão, acabrunhado. – Levante a cabeça, caboclo, essas coisas não tiram a pele de ninguém, e as manchas que deixam a gente lava. – Falava por falar, mas as frases do coração eram outras, o oposto do perdão. – Deixe a chuva diminuir, caboclo. – Não vai diminuir, mestre. Vou chegando. – Durval ficou espiando o amigo sair e pegar o rumo do bar de Sinhô. Trato é trato.
* Paulo Fernando Morais é jornalista e escritor (pftmorais@ig.com.br)

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