Sexta, 04 De Outubro De 2024
       
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Sem culpa


Publicado em 26 de setembro de 2024
Por Jornal Do Dia Se


Lembrança ancestral (Divulgação)

Rian Santos
riansantos@jornaldodiase.com.br
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O calendário me adverte sobre o 27 de setembro, quando a gurizada faz fila nos terreiros, a fim de se entupir com açúcar. Menino igual a todos eles, meio ateu, meio macumbeiro, procuro quem se disponha a servir o caruru, a galinhada com arroz, marcos ritualísticos de uma infância sem culpa – quando a fé irrefletida e a alegria davam as mãos, às gargalhadas.
Fala-se que a cerimônia celebra dois santos católicos, os irmãos Cosme e Damião. Alheio à tradição religiosa, lembro antes de Dona Angélica. Uma casa pequena, numa rua de barro. O perigo dos trilhos e o apito do trem. Os meninos desembestavam em algazarra do lado de fora. Eram muitos. Tinham força e inocência, graças a Deus. Em volta da mesa forrada com uma toalha branca, ao contrário, silêncio, serenidade e esforço de compreensão.
O invisível guiou a minha infância inteira. O bem, o bom e o belo no caminho. Tudo presente de uma avó que nunca teve o ventre rasgado pela minha mãe. Não cabe no conceito de família defendido por Bolsonaros,  Malafaias e Felicianos, é verdade, mas as flores que perfumavam as preces de Dona Angélica do outro lado da cortina, transparência de pano entre dois mundos, são a minha mais cara lembrança ancestral.
Dona Vitória foi outra. Uma negra forte, voz doce, sorriso largo, a feiticeira entronada atrás de uma panela de caruru. Bucho cheio, em nome de Cosme e Damião, eu adormecia nos braços gordos da senhora de desígnios guardados em cartas de baralho e linhas riscadas nas palmas das mãos.
Laico, herege, gentio, pagão, infiel. Não tinha bíblia lá em casa. Íntimo de mistérios, a vida inteira entre céu e terra, aprendi o amor ao invés de uma religião.
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