AS ESTRELAS DE IBARÊ E DE DÉDA
Publicado em 13 de junho de 2023
Por Jornal Do Dia Se
Afonso Nascimento
O historiador brasileiro Ibarê Dantas (ou Ibarê tout court) acaba de lançar mais um livro. Trata-se de uma biografia política sobre Marcelo Déda (DANTAS, Ibarê. Marcelo Déda na construção da democracia. Aracaju: Criação Editora, 2023). É um “tijolaço” de mais de quinhentas páginas e composto de dezesseis capítulos.
Para seguir em frente, preciso dizer que, antes da leitura do livro de Ibarê, eu mesmo tinha escrito três artigos sobre Marcelo Déda. (NASCIMENTO, Afonso. Um presidente sergipano. Jornal da Cidade, 14.01.2007. NASCIMENTO, Afonso. A trajetória política de Marcelo Déda. In NASCIMENTO, Afonso. Ensaios sobre política e políticos. Aracaju: Editora Criação, 2016. NASCIMENTO, Afonso. Marcelo Déda como ativista estudantil. Jornal da Cidade,13.10.2021.). Em outras palavras, estou a escrever com isso que estou à vontade para falar sobre o ex-governador petista, ainda mais depois da leitura da mais completa biografia sobre Marcelo Déda.
Quem é Ibarê Dantas? Considero que ele é um historiador liberal de esquerda que escreveu muitos e relevantes livros sobre a política sergipana. Por que historiador liberal de esquerda? Em todos os seus livros, o lugar de onde fala sempre a partir da esquerda, a sua sensibilidade é de esquerda, seja estando do lado dos tenentes, criticando as oligarquias, dissecando com elegância o regime militar, etc. O leitor que pode não ter gostado de minha afirmação está convidado a tomar qualquer livro de Ibarê e checar o que falei. Dou mais elementos do que disse. Enquanto estudante de História na UFS, combateu a ditadura militar e teve seu nome entre aqueles que os generais queriam longe dos bancos universitários.
A sua passagem pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) agregou ao seu currículo uma formação de cientista político à de historiador, quando se aproximou mais da esquerda. Nos anos 1980, Ibarê costumava dizer que a única coisa que ele aproveitava Nicos Poulantzas, um marxista grego-francês, era a sua afirmação de que o socialismo tinha que ser democrático. Não sei se ele se dava conta do que dizia. Nos seus tempos de esquerda, frequentava barzinhos populares no proletário Bairro Siqueira Campos com uma turma boa de professores e outros mais. Eu também estive nessas reuniões com Josué dos Passos, Ricardo Lacerda etc. Bons tempos! Mais tarde, o bar nada chique a ser frequentado era o de Duda, na Atalaia. Além de um intelectual à esquerda (mas sem o sentido forte de Perry Anderson, E. P. Thompson, Eric Hobsbawn), sempre foi um tipo generoso. Particularmente, como curioso da política sergipana, eu recebi dele muitas lições particulares e aprendi muito com os seus livros e artigos, aos quais sempre tenho recorrido.
Para produzir o seu novíssimo livro, Ibarê trabalhou durante cerca de oito anos. Contém um número impressionante de fontes. Em suas palavras, “colhi informações em depoimentos presenciais e à distância, entrevistas, mensagens e discursos, revistas e livros, teses de doutorado e dissertações de mestrado, monografias e relatórios, jornais e plataformas digitais, imagens e sites, documentos públicos e privados, bem como manuscritos”(p.15.). Ibarê Dantas também apresenta um riquíssimo arquivo de fotografias do biografado nesse livro.
O intelectual de Riachão do Dantas tinha muita admiração por Marcelo Déda. Com efeito, o historiador “oitentão” brasileiro não poupa os elogios a Marcelo Déda chamando-o, por exemplo, de “grande orador”, “figura marcante de seu tempo”, “fluência verbal”, “homem de muitas leituras” e outros encômios. Acho que chega a exagerar ao dizer o ex-governador era “obsecado” no seu desejo promover os interesses da classe trabalhadora sergipana. Por que faria isso? Inconscientemente, talvez o ex-governador lembrasse que seus avós paternos eram trabalhadores rurais? Ou que seu pai também pertenceu aos setores mais baixos do funcionalismo público estadual e tinha baixíssima escolaridade?
Político profissional, Marcelo Déda vem de uma família de juristas do lado materno. Como se sabe, os estudos jurídicos propiciam o ingresso na política. Além de político e escritor, o seu avô materno era advogado comissionado (rábula). Seu tio Artur Oscar de Oliveira era professor de Direito, juiz e depois desembargador. Sua irmã Maria do Carmo e seu irmão Cláudio já tinham se formado em Direito antes de Déda também frequentar o curso de Direito da UFS. E o próprio Déda ajudou um cunhado a tornar-se desembargador, em um ato de nepotismo.
Em dois momentos de seu livro, Ibarê Dantas levanta a relação entre Marcelo Déda e o teatro. Chega a chamá-lo de “ator”. Gostei muito de ler sobre essa ligação. Com efeito, a política e o teatro têm tudo a ver com representação, com espetáculo. Porém, não desenvolveu esse elo entre representação teatral e representação política. Ele recuperou esse lado teatral de Déda levantando o seu passado como estudante secundarista. Indo mais longe, a sociedade é como se fosse um grande teatro, no qual as pessoas têm seus papéis (inclusive o de atores políticos), seus textos, suas falas.
Ibarê Dantas foi implacável com certos adversários de Marcelo Déda, tenham sido eles conjunturais ou não. Não cito todos para não cansar o leitor, mas destaco os seguintes. Jackson Barreto, a maior liderança de esquerda ao lado de Déda e seu vice-governador no segundo mandato de governador, foi um deles. O “carrasco” de Déda no fim de sua vida, Eduardo Amorim foi outro. O sindicato dos professores estaduais e a sua principal liderança também se encontraram na linha de mira do historiador. Nem Lula escapou, mesmo sabendo que Déda era lulista. Não me parece que tenha sido injusto com as pessoas que fizeram um certo tipo oposição a Marcelo Déda.
Gostaria de pôr em relevo o catolicismo no sistema de valores de Marcelo Déda – coisa que Ibarê não o fez diretamente. Perto de morrer, ele declarou que nunca tinha levantado a voz para Deus. Deu a entender que morrer aos cinquenta e três anos fazia parte do destino traçado por Deus para ele. No seu mais importante discurso, aquele de sua posse como governador, recorreu a Deus em vários momentos. Agradeceu a Deus sua vitória eleitoral. Disse que Deus existia e a prova disso era a presença de seu pai e de sua mãe. Nada disso foi à-toa. Marcelo Déda, em sua infância, foi coroinha na principal igreja de Simão Dias. Essa experiência religiosa deve ter sido forte na sua formação como pessoa. Ele não foi apenas socialista.
Em todas as eleições que Déda disputou, Ibarê Dantas destaca o papel da militância petista. Os militantes tiveram um papel importante na vida política de Déda Quem eram os seus militantes? Sindicalistas, estudantes universitários, professores universitários, jornalistas, professores municipais e estaduais, bancários, petroleiros, militantes de movimentos sociais em geral. Nas eleições municipais e gerais, Déda sabia entusiasmar essa turma e vice-versa. Quando Déda foi eleito duas vezes prefeito e duas vezes governador, essa turma subiu com ele ao poder, no sentido forte dessa expressão.
O que significou para os sergipanos terem um primeiro governador de esquerda? Inicialmente, uma troca de elites ou quadros políticos no poder político estadual, mas que levou às classes populares sergipanas a esperança de dias melhores de verdade, sem retórica. Houve uma circulação de elites, com elites de direita saindo do governo e abrindo espaço para grupos de esquerda. Ajudou a civilizar o nível da política estadual, melhorou a sua qualidade. Sua obra em termos de infraestrutura econômica, social e cultural foi além do que eu esperava. Infelizmente, a sua descrição tomaria muito espaço para ser resumida aqui. Na composição dos seus quatros secretariados como prefeito e governador, gente nova passou a ocupar cargos na máquina estatal. O leitor pode encontrar no livro de Ibarê as listas dos novos quadros – bem como a turma da direita que participou dos governos de Déda. Para além disso, os problemas para tocar a máquina pública continuaram os mesmos. As elites econômicas e políticas estaduais não ameaçaram se mudar para Miami depois da vitória de Déda nas urnas.
Nas duas últimas eleições, quem não foi escolhido para fazer parte da equipe de Déda, ia ao Bar do Camilo (então bar petista, frequentado pelo próprio Déda) demonstrar a sua insatisfação, seu inconformismo por ter ficado de fora. Eu acho, particularmente, que o PT sergipano não tinha grandes quadros para ocupar muitos dos cargos disponíveis – o que remete a outro debate. Mas o problema era a indicação de gente de direita cujos partidos entraram nas coligações vencedoras de Déda. Colocar alguém como ex-deputado Jorge Alberto como chefe da Casa Civil era dose para leão! Os xiitas do PT tinham razão em relação a isso. Ainda assim, por incrível que pareça, Déda também tinha razão. Uma coisa é a ética da convicção, para quem está fora do poder, outra coisa é a ética da responsabilidade, para quem alcança o poder. Isso foi dito por Déda seguindo a distinção de Max Weber. Tem que fazer concessões para governar. Por causa disso, Déda perdeu seguidores e o PT perdeu quadros.
Ibarê Dantas mostra que Déda, um político moderno, teve uma carreira política curta de quase trinta anos. Colecionou mais vitórias do que derrotas ao longo desse período de redemocratização do Brasil. Foi mais político executivo do que legislativo. Interrompeu três mandatos para se candidatar a outros postos políticos. Nunca mudou de partido e de facção dentro do PT. Sempre esteve ao lado dos presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff. Foi comandante do PT estadual, mesmo sem ocupar a sua presidência. Depois que foi eleito deputado federal, a sua carreira foi consolidada e teve cinco mandatos seguidos.
Sobre o passado da ditadura militar, Marcelo Déda não teve coragem cívica ou política, digo eu, para instalar uma Comissão da Verdade Sergipe. Ele se comportou como “bom rapaz” ou foi mal aconselhado por seus assessores. Nem mesmo com a presidente petista Dilma Rousseff tendo providenciado uma Comissão Nacional da Verdade (CNV)! Enfim, a CNV iniciou e terminou os trabalhos no governo de Dilma Rousseff, enquanto em Sergipe teria de esperar o próximo governador Jackson Barreto.
Ibarê conseguiu sintetizar, de modo sucinta e precisa, quem era o Déda maduro, pouco tempo antes de morrer. “Primeiro foi o impacto perturbador. Tinha 52 anos, com esposa jovem e amada, cinco filhos, dois dos quais de menor idade. Sensibilidade refinada, espírito alevantado, animador de ambientes e amante da vida. Cônscio de suas potencialidades e memória excepcional. Insaciável sede de saber e vontade de socializá-lo. Cultor de interlocução respeitosa e diálogos férteis. Lutador incansável por suas convicções e aberto ao contraditório. Diante dos divergentes, mostrava disposição ao enfrentamento por meio do debate franco”.
Continua no mesmo parágrafo por mim dividido em dois. “Generoso e por vezes enérgico, impulsivo e tolerante, alimentava ambições políticas e, quando pretensiosas, sabia recuar e fazer autocrítica enfática. Orador com tons adequados para cada ocasião. Ideias claras e ilustrações apropriadas. Visão ampla da sociedade, grande discernimento da realidade e espírito público. Observador arguto da alma humana, sedutor de multidões, atento aos movimentos da elite e obcecado pela ascensão das classes subalternas” (p.486).
Déda perdeu duas eleições para prefeito de Aracaju. Em 1982, perdeu para Jackson Barreto e, em 1986, para Wellington Paixão, candidato de Jackson Barreto. Mais adiante, ganhou duas eleições para prefeito de Aracaju contra José Almeida Lima e Suzana Azevedo, respectivamente em 2000 e 20004. Déda aplicou duas surras eleitorais em João Alves, ao ganhar a disputa para o governo estadual em 2006. O seu primeiro vice-governador foi o conservador Belivaldo Chagas. Em 2006, na sua segunda vitória teve Jackson Barreto como seu vice (Ver vários capítulos do livro.). Ao ganhar a eleição tendo Jackson Barreto como vice, deu sobrevida à esquerda sergipana, permitindo a continuidade da esquerda política no controle de Sergipe por mais algum tempo.
A morte precoce de Marcelo Déda em 2013 provocou efeitos negativos sobre o PT e sobre a política sergipana. Se a isso for somado o falecimento de José Eduardo Dutra em 2015, é possível imaginar que os estragos foram bem maiores. O PT perdia as suas maiores lideranças políticas estaduais e nacionais. Uma coisa é perder um quadro militante e sem mandato, outra não ter mais as suas maiores autoridades políticas no exercício de seus postos. O PT encolheu, quadros se afastaram por envelhecimento, por migração partidária, decepcionados pelos escândalos que atingiram o PT nacional, pelo impeachment da presidente Dilma, pela prisão de Lula, etc.
Sobreviveu a combativa e valente liderança da deputada estadual Ana Lúcia Vieira e novos nomes tomaram a cena política do PT, a saber, Márcio Macedo, Eliane Aquino, Rogério Carvalho e João Daniel. Agora com a volta do presidente Lula à presidência do país, renovam-se as expectativas de as forças políticas de esquerda retornarem ao protagonismo político também em Sergipe.
Mesmo dez anos após a sua morte, ter uma biografia política escrita por Ibarê Dantas faz de Marcelo Déda um privilegiado. Isso não é para todo o mundo! Ele fez por merecer.
Afonso Nascimento, ex-professor de Direito da UFS