Barretão na intimidade
Publicado em 24 de março de 2015
Por Jornal Do Dia
Contam que, certa vez, negociando uma peça valiosíssima com a esposa de conceituado médico local, ela escolheu, depois de muito experimentar várias pulseiras, uma de seu agrado, de elevado valor. Negócio fechado, a pergunta indevida: "Seu Sindulfo, é ouro, né? Fica preta?"
* Raymundo Mello
Em 1948/1949 fui aluno do Professor José Barreto Fontes (Química – 4.ª série ginasial e 1.º ano científico) no tradicional Colégio Atheneu Sergipense e, depois, morando e convivendo aqui na Cidade Menina (Aracaju), onde todos se conheciam, inclusive por força de meu trabalho (empresa de transportes aéreos e repartição pública federal), tive a satisfação de manter, por anos e anos, bom relacionamento com a figura extremamente simpática e sempre amiga do professor.
Barretão, como era conhecido, desfrutava de grande conceito em todas as áreas da sociedade sergipana, a partir de sua origem familiar. Seu pai, o senhor Sindulfo Barreto Fontes, comerciante tradicional na área de ourivesaria, era daqueles homens que mereciam respeito em nosso comércio. Vendia jóias em loja estabelecida na rua Laranjeiras, defronte da Agência Central dos Correios e Telégrafos, e quando ele manuseava uma peça, para comprar ou para vender, se dizia "é ouro", era ouro mesmo. O preço de negócio, comprar ou vender, era ele que estabelecia, e quem quisesse com ele negociar, tinha que aceitar, porque a avaliação dele era correta.
Contam que, certa vez, negociando uma peça valiosíssima com a esposa de conceituado médico local, ela escolheu, depois de muito experimentar várias pulseiras, uma de seu agrado, de elevado valor. Negócio fechado, a pergunta indevida: "Seu Sindulfo, é ouro, né? Fica preta?". E ele, com todo respeito: "Fica sim, se a senhora passar pixe na pulseira". Ato contínuo, recolheu a peça ao interior de seu velho e seguro cofre. "Tá bom!" – disse a cliente; "Vou buscar o dinheiro. Volto já". Era uma negociação lucrativa para ele, um dia de venda considerada boa. Pouco depois, volta a cliente: "Vim buscar a jóia, está aqui o dinheiro". E ele, bem sério: "A jóia não existe mais; passei pixe, ficou preta, joguei fora. A senhora vai ter que ir a outra joalheria, aqui não tem mais nada que lhe agrade". Colocou no olho a sua lente de aumento e continuou a negociar com outro cliente.
Senhor Sindulfo tinha dessas atitudes. Gabava-se de ter vendido um imóvel que anunciara à venda há três anos: "Vende-se esta casa. Tratar na Joalheria Fontes". Após esperar um comprador por três anos, como nenhum apareceu, foi na casa, tirou a velha placa e colocou outra: "Vende-se esta merda. Tratar …". Vendeu no mesmo dia.
Era uma figura inteligente e um negociador carismático que transferiu para seus filhos (6 ou 7) suas virtudes. Ao Professor Barreto Fontes, como aos demais, inteligência, lucidez e espírito tranquilo.
O professor Barreto Fontes prestou seus serviços como mestre no Departamento de Química da Universidade Federal de Sergipe e exerceu outras atividades que lhe asseguraram o título de Cientista. A sua sala na UFS era identificada com a inscrição: "Professor José Barreto Fontes – Cientista".
Em paralelo, ele mantinha também o Laboratório de Análises Clínicas, ali no 2.º andar do Edifício Mayara (rua Laranjeiras, esquina com João Pessoa), e prestou relevantes serviços a hospitais, médicos e, especialmente, clientes, ajudando a identificar suas doenças, mediante exames laboratoriais de sangue, urina e fezes, dedicando horas aos microscópios, estudando e analisando células disponibilizadas.
Fato interessante: ele prestava atendimento aos segurados do IPASE com carinho especial e quando o cliente, por problemas de saúde e/ou deficiência de locomoção, não podia comparecer ao laboratório, ele ia fazer a coleta de sangue em sua residência, sem cobrar nada pelo trabalho extra. Aos familiares ou acompanhantes dos pacientes, dizia: "Faço a coleta do sangue. O xixi e o cocô, vocês levam lá no laboratório, logo após a coleta". E prestava todas as orientações necessárias para a segurança do material a ser coletado.
Não sei se alguém no estado, especialmente ligado à Universidade Federal de Sergipe, já tomou a iniciativa de registrar suas atividades naquele órgão de ensino superior, ou mesmo desenvolver um trabalho biográfico sobre pessoa tão importante. Se ainda não foi feito, é hora de se efetivar tal trabalho.
Em 1948, com um grupo de 30 colegas, concluintes do curso ginasial do Atheneu, fizemos uma "viagem de estudos" a Propriá. Fomos no trem da Leste ("Maria fumaça"), um percurso de cerca de seis a sete horas de viagem; principal objetivo: conhecer e analisar a situação do rio São Francisco, face a captação de água para a construção da Usina de Paulo Afonso. Fomos recebidos pela representação local da CHESF, que, dentro das possibilidades da época, nos transmitiu o possível, além de nos dizer, com o ufanismo oportuno, que a usina significava a libertação do Nordeste. Mas a preocupação do professor era com a vida futura do São Francisco. E ele já tinha razão, à época.
Mas o professor tinha também seus momentos de manifestar seu humor. Cuidava com muito carinho de uma chácara lá pros lados da Atalaia de então. Boa casa, coqueiral produzindo, e ele tomando as providências para perenizá-lo. De vez em quando recebia visita de amigos que conheciam o seu hobbie – cuidar dos coqueiros.
Certo dia, num bate papo na praça Fausto Cardoso, ali entre os prédios onde funcionavam, à época, o Palácio do Governo e a Assembleia Legislativa, alguns de seus amigos chamaram uma cigana que "lia a mão para dizer a sorte da pessoa" e o convenceram a dar sua mão para leitura. E isso foi feito. Ao final do trabalho, a cigana lhe disse: "Vejo aqui em sua mão um grande futuro para o senhor. O senhor vai ficar rico colhendo coco, seu coqueiral vai crescer muito e o senhor terá muitos ganhos trabalhando com coco". E Barreto, em alto estilo perante os amigos que lhe levaram a cigana, replicou: "Parabéns! A senhora é muito boa nas previsões, porém, péssima na ortografia. O meu futuro é cuidando, como faço, de ‘cocô’, não é de coco não".
De outra feita, foi pronunciar uma palestra e, como de praxe, o presidente da sessão, um francês que temporariamente desenvolvia pesquisa na UFS, ao ler seu currículo para apresentá-lo à audiência, referiu-se ao professor, com seu francês aportuguesado, dizendo que "o palestrante, quando jovem, concluiu estudos primários à l’école de Marricá de Laloux, com excelente desempenho". Barreto, ao iniciar a palestra, agradeceu pelas boas referências que lhe foram feitas, mas esclareceu: "Não concluí estudos primários; naquela época, a gente aprendia a ler, escrever e fazer contas. E também não estudei na l’école de Marricá de Laloux; eu estudei foi em minha terra mesmo, Laranjeiras, bem aqui pertinho, no Brasil, em Sergipe, na banca de ‘Sá Marica de Lalau’, com muita honra".
Barreto era um cientista na expressão da palavra, Químico Industrial, professor universitário; porém, leve, brincalhão, espirituoso, por herança de seu pai. Gostava de usar calça jeans e suspensório e andava no seu querido Fusca 1965, verdinho, que ele não fechava quando estacionava (deixava sempre os vidros abertos), principalmente nas proximidades do Departamento de Química da UFS, antes na rua Vila Cristina, vizinho ao Batistão, e depois na Cidade Universitária Prof. José Aloísio de Campos, onde professores, alunos, funcionários e transeuntes, ao ver o fusquinha verde-claro estacionado, logo diziam, com respeito e carinho, "ói, lá… o fusquinha do Professor Barretão!".
Esse era o Professor José Barreto Fontes. Tive o privilégio de conhecê-lo e de desfrutar de sua amizade.
* Raymundo Mello é Memorialista
raymundopmello@yahoo.com.br