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Brasil: ainda o paraíso do financismo


Publicado em 05 de setembro de 2024
Por Jornal Do Dia Se


* Paulo Kliass
O nosso país segue batendo recordes atrás de recordes, em inúmeras variáveis e modalidades, para assegurar o título de campeão mundial de juros. Para a elite do financismo local, pouco importa que tal pódio seja considerado uma vergonha internacional e um escândalo no que se refere a definições de prioridades de política econômica. Aliás, para um governo que se pretende reformador da ordem da profunda desigualdade que marca também a cena global, a insistência em continuar com esse misto de política fiscal da austeridade e política monetária do arrocho em suas próprias praias se apresenta como um péssimo cartão de visitas.
Lula tem passado boa parte dos dias de seu terceiro mandato batendo fortemente na condução de Roberto Campos Neto à frente do Banco Central (BC). Trata-se de uma estratégia importante e correta, uma vez que o herdeiro bolsonarista no coração do órgão regulador e fiscalizador dos sistemas bancário e financeiro logo apresentou-se, desde o início, como um verdadeiro sabotador do novo governo, que havia derrotado o defensor da ditadura e da tortura nas urnas. Mas o fato é que os quatro membros da diretoria do BC indicados pelo atual Chefe do Executivo – e, portanto, integrantes o Comitê de Política Monetária (COPOM) – têm acompanhando de forma sistemática as posições de Campos Neto no interior do órgão que estabelece o patamar da taxa oficial de juros.
As dúvidas a respeito de Galípolo.
O problema é que a indicação de Gabriel Galípolo para substituir o presidente bolsonarista a partir de janeiro de 2025 corre o risco de “naturalizar” a política monetária vigente. Na tentativa de buscar um nome que fosse de agrado dos representantes do sistema financeiro, o Presidente da República perde mais uma oportunidade de acertar a trilha da mudança, rumo a um projeto nacional de desenvolvimento econômico, social e ambiental. O nomeado ainda vai cumprir com o ritual da sabatina no Senado Federal para ter sua indicação confirmada. Mas já tem dado declarações públicas a favor da manutenção da taxa SELIC nas alturas. Até mesmo Lula já começa a flexibilizar sua cruzada contra os juros elevados, dizendo que se Galípolo o convencer a aumentar SELIC, ele ficará de acordo. Em entrevista a uma emissora de rádio, ele se saiu com a seguinte declaração:
(…) “Se um dia Galípolo chegar para mim e disser que tem que aumentar a taxa de juros, ótimo.” (…) [sic]
Assim tudo leva a crer que a substituição ficará com toda a cara de trocar seis por meia dúzia, como diz a expressão popular. Lula sabe que não mais poderá criticar a nova alta da taxa, uma vez que teria indicado o Presidente do BC e a maioria dos integrantes da diretoria do órgão e do COPOM. Afinal, a partir do início do ano que vem, não haverá mais a desculpa da “herança maldita”. Como Galípolo contará com um mandato de 4 anos à frente do BC, resta saber como ele se comportará na função: preparando o terreno para seu promissor futuro profissional no interior do financismo ou mantendo uma coerência com o projeto desenvolvimentista para o qual Lula foi eleito em outubro de 2022?
O BC publicou na semana passada sua mais recente nota sobre as estatísticas fiscais. A julgar pelas informações divulgadas, o desastre continua. O Brasil bateu novo pico nas despesas com juros da dívida pública. Em julho deste ano, o total repassado aos operadores do sistema financeiro atingiu o valor de R$ 80 bilhões. Trata-se de um montante superior em fantásticos 74% mais elevado aos R$ 46 bi registrados no mesmo mês do ano passado. Uma loucura! Não existe uma única rubrica orçamentária que tenha sido aquinhoada com tamanho salto ao longo do período. Como se vê, a verdadeira “gastança irresponsável dos recursos públicos”, tão amplamente denunciada pelas elites endinheiradas e reverberada pelos grandes meios de comunicação, reside em um outro endereço.
E segue a farra do financismo
Para lançar um olhar um pouco mais dilatado e não ficarmos restritos apenas a uma comparação envolvendo 30 dias do comportamento de tal variável, vale a pena lançar mão de uma consulta quanto à evolução verificada durante os primeiros sete meses do ano. Neste caso, os dados apresentados pelo BC nos informam que o total de gastos com juros da dívida pública chegaram a R$ 535 bi. Esse valor, superior a meio trilhão de reais, representa um crescimento de 40% em relação aos R$ 383 bi dispendidos entre janeiro e julho de 2023. Ou seja, trata-se realmente de uma tendência de elevação em relação a períodos anteriores. E o pior é que, caso a trajetória da SELIC não seja mudada, é bem capaz que o exercício de 2024 seja manchado pela tragédia de superação da marca de um trilhão de reais a esse título. Como o próprio Lula gostava de citar, “nunca antes na História deste País”
Caso os dados envolvam a avaliação do verificado ao longo dos últimos 12 meses, a tendência altista também é mantida. Entre agosto de 2023 e julho de 2024, por exemplo, o total das despesas com juros da dívida pública também atingiu outra marca recorde. Foi retirada do orçamento público uma quantia equivalente a R$ 870 bi para alimentar a voracidade do parasitismo rentista. O valor inédito significa um crescimento de 21% em relação aos R$ 718 bi encontrados nos registros do BC para os 12 meses de 2023.  Se considerarmos uma série histórica com esse valor dos últimos 12 meses para acompanharmos a evolução a cada mês, o resultado também é preocupante. O gráfico abaixo ilustra bem essa tendência altista.
Outra tendência que reforça a interpretação do poder do financismo na subtração de recursos do orçamento federal para o cumprimento das despesas financeiras refere-se à evolução do total de gastos de tal natureza em relação ao estoque total da dívida líquida do governo geral. A observação do gráfico abaixo nos revela que o aumento expressivo com o montante de juros dispendidos não implicou em uma redução correspondente do valor total da dívida. Pelo contrário, pagou-se um volume crescente de despesas financeiras e ao mesmo tempo o total da dívida pública também aumentou de patamar.
O total de pagamento de juros saiu de R$ 448 bi em 2021 e atingiu os atuais R$ 870 bi em 2024, considerando os últimos 12 meses. Ora, apesar de tal enorme esforço de austeridade nas contas públicas, o fato é que o estoque total da dívida pública seguiu crescendo. Esse indicador saiu de R$ 5,4 trilhões em 2021 para os atuais R$ 7,1 tri em julho de 2024. Como a taxa SELIC é o piso de referência para a remuneração dos serviços do endividamento público, a tendência é de que o quadro continue a se agravar caso não ocorra uma mudança significativa na condução da política monetária.
Finalmente, vale observar o que ocorre com a evolução da relação entre a despesa com juros e o estoque da dívida pública. Levando-se em conta o mesmo período analisado anteriormente, o gráfico abaixo evidencia a piora contínua no comportamento do indicador que apresenta a comparação entre o volume total de juros e o estoque total da dívida líquida do governo.
As informações acima demonstram a ineficácia da política de austeridade fiscal para solucionar as questões no âmbito da própria política fiscal. Trata-se da chamada estratégia de “enxugar gelo”. Por meio de dispositivos de ordem jurídica como a Lei de Responsabilidade Fiscal, o extinto Teto de Gastos e o atual Novo Arcabouço Fiscal, o que se estabelece como prioridade para a política econômica do governo é a redução das despesas orçamentárias ditas “primárias”. Assim, por meio da armadilha perversa do simples adjetivo aparentemente ingênuo, o que se promove é a introdução da maldade de concentrar todo o tipo de teto, limite, contingenciamento ou corte apenas e exclusivamente nas rubricas não-financeiras.
Já as despesas com pagamento de juros são consideradas imexíveis. Para elas, o céu é o limite. A busca obsessiva de resultados considerados “positivos” nas contas públicas é considerada pelo pessoal das finanças como sinônimo de sucesso no quesito “responsabilidade fiscal”. No entanto, ao deixar intocável o volume crescente de pagamento de juros, o governo concentra seus esforços na manipulação criminosa de artifícios para redução de direitos sociais e constitucionais, a exemplo de previdência social, saúde, educação, assistência social, segurança pública, salário de servidores, saneamento e toda sorte de investimentos necessários para manutenção e ampliação do rol de políticas públicas.
Não é por acaso que surgem pela grande imprensa as tentativas de desconstitucionalizar os pisos constitucionais de saúde e de educação, além da obscena proposta de desvincular os benefícios da previdência social do valor do salário mínimo. A “moda” do momento, assumida pelos próprios responsáveis pela área econômica, é responsabilizar as “fraudes” em políticas públicas essenciais para minorar os efeitos da profunda desigualdade que nos caracteriza como Nação, a exemplo do Benefício de Prestação Continuada (BPC) ou o próprio Bolsa Família. Uma loucura! Medidas para garantir a integridade e a correção na aplicação dos recursos públicos deveria fazer parte do cotidiano de um governo preocupado em promover justiça social. Ocorre que escolher programas como os acima mencionados para criminalizá-los e apontá-los como responsáveis pelo desequilíbrio fiscal é assumir de forma maldosa o discurso mentiroso das elites.
“Pente fino” deve ser feito no topo da pirâmide da desigualdade.
Se o governo deseja fazer um verdadeiro “pente fino” nas despesas públicas, deveria começar pelo escandaloso nível da sonegação tributária que impera há séculos por estas terras. Se o governo pretende promover justiça fiscal, deveria encaminhar imediatamente ao Congresso Nacional uma Medida Provisória eliminando a inexplicável permanência da isenção de lucros e dividendos, excrescência que se mantém inalterada desde 1996. Se o governo está efetivamente preocupado com o equilíbrio das contas públicas, ele deveria colocar na mesa os valores das despesas com juros e não apenas alardear, fazendo coro com a nata do financismo, suas soluções que focam apenas na redução de gastos com políticas sociais e investimentos.
Lula precisa acordar de uma vez por todas e intervir neste debate. Não basta apenas nomear um novo Presidente do BC que seja do agrado do universo paralelo da Faria Lima. É fundamental reorientar a política monetária e a política fiscal. Não faz sentido fechar os olhos, os ouvidos e a boca para os R$ 870 bi de despesa orçamentária com juros e comandar uma verdadeira caça às bruxas em supostos vazamentos pouco expressivos nas políticas de natureza social.
* Paulo Kliass, doutor em economia e membro da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental do governo federal.
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