Segunda, 12 De Maio De 2025
       
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Camões sergipano


Publicado em 05 de março de 2020
Por Jornal Do Dia


 

Há uma interessante observação de que a identificação de alguns povos ou países constam em um escritor, em um determinado livro ou, talvez, mais precisamente, em um personagem desse livro
Antonio Passos
Quem trouxe de volta à claridade aquele canto escurecido da minha memória foi o poeta João Brasileiro. Dividimos a mesma mesa na comemoração bissexta de aniversário do amigo comum Jean-François Dupisson. Lá, em meio aos diversos cruzamentos e bifurcações da conversa, Brasileiro tocou naquele personagem tão presente nas nossas já distanciadas infâncias: Camões – este, não o de Os Lusíadas e sim o astucioso.
Logo evidenciou-se que tanto ele quanto eu – um ambientado no centro-sul de Sergipe e outro no agreste central – tomamos conhecimento das aventuras desse Camões. Brasileiro sugeriu que essas narrativas tenham circulado por toda a região nordeste e sejam, possivelmente, uma invenção nordestina. Porém, o que fomos capazes de constatar dos nossos depoimentos é que, independentemente da origem, a fábula transatlântica circulou por aqui, ao menos durante uma boa parte do século XX.
Eu mesmo, relembro agora, conheci Camões em casa, contado pelo meu pai e pela minha mãe. Como minha família era relativamente pudica, a primeira versão que me chegou foi a de um personagem astuto e decoroso, depois, nas conversas da rua, veio o lado fescenino. Contudo, e nisso as minhas lembranças e as de Brasileiro coincidem, o traço distintivo desse "nosso" Camões "sergipano" era uma esperteza que sempre o colocava em vantagem frente a um suposto rei.
Brasileiro lembrou de um causo: "Conta-se que o rei ofereceu a filha em casamento e disse que desposaria a princesa aquele que fosse ao palácio nem nu e nem vestido. Após o fracasso de vários candidatos, eis que se apresenta Camões coberto por uma rede de pesca. Desse modo, estaria vestido e ao mesmo tempo nu. Assim, conquistou Camões o lugar de genro do rei".
Há uma interessante observação de que a identificação de alguns povos ou países constam em um escritor, em um determinado livro ou, talvez, mais precisamente, em um personagem desse livro. Assim, o espírito grego estaria na Ilíada e o argentino em Martín Fierro… São exemplos. Não consigo enxergar o mesmo para o Brasil. João Brasileiro porém, ao resgatar esse Camões oral que nos foi transmitido na infância, talvez tenha apontado indícios de uma fonte para a nossa identidade… O "nosso" Camões "sergipano" é sobretudo um esperto homem do povo (plebeu ou nobre rebelde) que usa a vivacidade mental para driblar as opressões do poder constituído, representado pela figura do rei. E não é esse um perfil amiúde difundido na literatura nordestina, sobretudo naquela que mais alcança (ou alcançou no passado) a simpatia popular?
Desconfio que haja parentesco entre esse "nosso" Camões, Chicó e João Grilo, por exemplo. E talvez daí provenha parte da identidade nordestina (também sergipana): o culto a essa esperteza imaginada, cômica, satírica, como uma narrativa de resistência às explorações e aos mandos seculares, impostos do alto ou de fora contra as populações que aqui restaram.

Há uma interessante observação de que a identificação de alguns povos ou países constam em um escritor, em um determinado livro ou, talvez, mais precisamente, em um personagem desse livro

Antonio Passos

Quem trouxe de volta à claridade aquele canto escurecido da minha memória foi o poeta João Brasileiro. Dividimos a mesma mesa na comemoração bissexta de aniversário do amigo comum Jean-François Dupisson. Lá, em meio aos diversos cruzamentos e bifurcações da conversa, Brasileiro tocou naquele personagem tão presente nas nossas já distanciadas infâncias: Camões – este, não o de Os Lusíadas e sim o astucioso.
Logo evidenciou-se que tanto ele quanto eu – um ambientado no centro-sul de Sergipe e outro no agreste central – tomamos conhecimento das aventuras desse Camões. Brasileiro sugeriu que essas narrativas tenham circulado por toda a região nordeste e sejam, possivelmente, uma invenção nordestina. Porém, o que fomos capazes de constatar dos nossos depoimentos é que, independentemente da origem, a fábula transatlântica circulou por aqui, ao menos durante uma boa parte do século XX.
Eu mesmo, relembro agora, conheci Camões em casa, contado pelo meu pai e pela minha mãe. Como minha família era relativamente pudica, a primeira versão que me chegou foi a de um personagem astuto e decoroso, depois, nas conversas da rua, veio o lado fescenino. Contudo, e nisso as minhas lembranças e as de Brasileiro coincidem, o traço distintivo desse "nosso" Camões "sergipano" era uma esperteza que sempre o colocava em vantagem frente a um suposto rei.
Brasileiro lembrou de um causo: "Conta-se que o rei ofereceu a filha em casamento e disse que desposaria a princesa aquele que fosse ao palácio nem nu e nem vestido. Após o fracasso de vários candidatos, eis que se apresenta Camões coberto por uma rede de pesca. Desse modo, estaria vestido e ao mesmo tempo nu. Assim, conquistou Camões o lugar de genro do rei".
Há uma interessante observação de que a identificação de alguns povos ou países constam em um escritor, em um determinado livro ou, talvez, mais precisamente, em um personagem desse livro. Assim, o espírito grego estaria na Ilíada e o argentino em Martín Fierro… São exemplos. Não consigo enxergar o mesmo para o Brasil. João Brasileiro porém, ao resgatar esse Camões oral que nos foi transmitido na infância, talvez tenha apontado indícios de uma fonte para a nossa identidade… O "nosso" Camões "sergipano" é sobretudo um esperto homem do povo (plebeu ou nobre rebelde) que usa a vivacidade mental para driblar as opressões do poder constituído, representado pela figura do rei. E não é esse um perfil amiúde difundido na literatura nordestina, sobretudo naquela que mais alcança (ou alcançou no passado) a simpatia popular?
Desconfio que haja parentesco entre esse "nosso" Camões, Chicó e João Grilo, por exemplo. E talvez daí provenha parte da identidade nordestina (também sergipana): o culto a essa esperteza imaginada, cômica, satírica, como uma narrativa de resistência às explorações e aos mandos seculares, impostos do alto ou de fora contra as populações que aqui restaram.

 

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