CLARA
Publicado em 20 de agosto de 2022
Por Jornal Do Dia Se
Prof. Dr. Claudefranklin Monteiro Santos
Pés na areia e antes que o mar me tome toda a atenção, sou assaltado pela sim plicidade dos búzios e pelas diversas formas de pedras e pedrinhas. Um búzio em especial me remete à memória de uma das maiores cantoras do Brasil, que se viva estivesse estaria completando 80 anos de nascimento. Branco, em forma de concha, com sulcos de uma extremidade à outra. Este e tantos outros se apresentam como adereços, adornando, como uma coroa que pende para os lados, como tranças, o rosto de Clara Nunes, com um sorriso largo, franco e bonito, na capa do vinil “A deusa dos orixás” (Somlivre, 1984).
Entretanto, não foi por este LP que tive o primeiro contato com a cantora mineira de Paraopeba. E sim por um outro, de 1976, que fazia parte do acervo de meu saudoso irmão mais velho, o professor José Cláudio Monteiro Santos. Refiro-me “Clara – o canto das três raças”. Quando os tambores da canção principal que leva o nome do vinil preencheram meus ouvidos, meu coração foi ao ritmo seguinte da viola e dos demais instrumentos, com aquele vozeirão ecoando pelos ares.Foi uma experiência sonora mágica e indescritível, quando eu nem tinha sete anos ainda. “Canto das três raças” é a obra-prima de Clara, autoria de Paulo César Pinheiro e Mauro Duarte (1974).
O nome Clara para além de artístico também está diretamente relacionado ao dia em que se comemora a memória de Santa Clara de Assis, falecida no dia 11 de agosto de 1194. Clara Francisca Gonçalves Pinheiro nasceu no dia 12 de agosto de 1942, a caçula dos sete filhos de Manuel Pereira de Araújo e Amélia Gonçalves Nunes. Do sobrenome da mãe, Nunes. Nossa amada e eterna Clara Nunes. Um estrela de grandeza exuberante, que teve uma vida meteórica de apenas quatro décadas.
Clara Nunes não teve uma vida fácil. Perdeu os pais muito cedo: ele, por conta de um atropelamento, e ela, combalida por uma depressão profunda e um por um câncer fatal. Desse modo, foi criada desde os seis anos por sua irmã Maria (Dindinha) e pelo irmão José (Zé Chilau). Como aconteceu a alguns nomes de nossa cultura, criou gosto pela música fazendo catecismo na Igreja Católica e ouvindo as divas de sua época, a exemplo de Ângela Maria.
Não deu noutra. Aos 10 anos de idade, venceu seu primeiro concurso de música. Para garantir o sustento da família, foi operária de fábrica de tecidos, mudando para Belo Horizonte em 1957, indo morar com dois outros irmãos (Vicentina e Joaquim). Seguiu sendo tecelã na capital mineira, foi normalista e continuou a praticar o canto. Mocinha, se afastou do catolicismo e se permitiu ter outras experiências religiosas que irão mudá-la e moldá-la como artista: primeiro com o espiritismo kardecista e depois com a umbanda e o candomblé, quando passou a se apresentar somente de branco.
Quem a inseriu no mundo artístico foi o violonista Jadir Ambrósio, autor do hino do Cruzeiro. Primeiro no rádio e depois na cena fonográfica, gravando seu primeiro disco em 1965: “A Voz Adorável de Clara Nunes”. Num primeiro momento, naquele mesmo padrão das cantoras de sucesso que a antecederam, depois, firmando-se no samba. Na década de 70 atingiu o auge de sua carreira e entrou na década seguinte, madura, e prometendo ainda mais se afirmar.
Porém, no dia 5 de março de 1983, véspera de meus nove anos de idade, Clara Nunes morreu após uma cirurgia para tirar varizes. Uma morte misteriosa até hoje, tendo como laudo oficial uma reação alérgica à anestesia que lhe provocou parada cardíaca e 28 dias numa UTI. Outra dia, ouvi de um especialista na área que a causa teria sido outra, mas que a imprensa havia omitido para preservar a sua imagem. Eu custei e custo a acreditar até hoje nesta outra versão, mas prefiro me concentrarno que ela significou e ainda segue significando para a música brasileira. Imortalizada, Clara está entre as maiores vozes femininas de nossa história, linda com as contas dos seus cabelos e como os búzios que cato na beira do mar.