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Considerações sobre um ensaio de Pierre Vesperini


Publicado em 30 de agosto de 2024
Por Jornal Do Dia Se


* Luiz Carlos Bresser-Pereira
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Em seu ensaio na New Left Review com esse título (no. 146, 2024), Pierre Vesperini começa discutindo a “cultura do cancelamento”. Jovens acusam de racistas ou misóginas ou autoritárias algumas das mais prestigiosas figuras do pensamento, da arte e da política da cultura ocidental. Ele distingue a “cultura como herança” (o conhecimento adquirido através das gerações), que é o alvo da proposta de cancelamento, da “cultura como costume” – o conjunto de crenças e valores dominantes, as ideologias ou as mentalidades. Mas o que realmente interessa a Pierre Vesperini não é a cultura do cancelamento, mas é como se formou e por quais etapas passou a cultura do Ocidente.
Diz Pierre Vesperini que para ele “o Ocidente é o resultado da globalização da civilização europeia” (p. 100). Ainda que tenha se baseado na Grécia e na Roma Antiga, a cultura ocidental não começou naquele tempo. Foram dois fatores que, em torno do século IV, determinaram sua origem: a divisão do Império Romano em um Império Bizantino, e outro do Ocidente e o início da Cristianização – da conversão de toda a população ao cristianismo. Ele escreve Cristianização com c maiúsculo porque este fato ou a Conversão tem um papel central em sua visão do Ocidente.
Ele nos lembra que “o mundo antigo não se converteu espontaneamente; a Cristandade foi antes um jugo violentamente imposto a ele.” Eu aprendi exatamente o contrário quando era menino, mas hoje os historiadores deixam pouca dúvida quanto a ter sido o cristianismo imposto a ferro e fogo a toda aquela gente. E a Igreja logo adotou também um argumento poderoso – que os pagãos iriam todos para o inferno. “Olhando para os séculos decorridos não podemos senão reconhecer que a Europa nunca foi livremente, sinceramente, pacificamente cristã. Uma espada estava sempre erguida sobre a consciência da população” (p. 101).
O cristianismo trouxe inovações que o fortaleceram. Primeiro, a vida eterna depois da morte. Religiões mais antigas falavam também em outra vida, mas apenas agora a vida eterna se tornava merecida pelo bom comportamento. Segundo, na antiguidade o corpo e a alma eram uma unidade, agora não mais, a carne levava a alma ao pecado e à danação. Finalmente, para se salvar o homem devia aceitar todos os dogmas da Igreja – aceitá-los sem reserva. E assim os clérigos tornavam-se os guardiões da ordem. Aqueles que negavam essa fé – os judeus, os muçulmanos, os ‘heréticos’, as bruxas e os pagãos eram o inimigo.
A Cristandade foi a primeira camada da cultura ocidental, a segunda foi a capitalista. O capitalismo mostrou-se logo muito mais do que um sistema econômico – uma grande mistura do econômico, do político e do religioso. Agora, mais expressamente do que no caso da conversão, constituiu ‘um projeto político’. Pierre Vesperini, poderia ter lembrado que esse projeto político está baseado em um mito – que o ‘mercado’ teria capacidade de coordenar toda a economia sem praticamente nenhuma intervenção do Estado.
Com a Revolução capitalista, o Ocidente aumentou fortemente seu poder e passou a ter condições de conquistar o mundo. Foi o Imperialismo colonialista da segunda metade do século XIX e a primeira metade do século XX. Pierre Vesperini assinala que Marx, “historiador sem paralelo, observou que a escravidão velada dos trabalhadores assalariados necessitava, como base, de uma escravidão não-qualificada no Novo Mundo” (Marx, O capital, trad. Ben Fowkes, 1976: 925).
Essa ordem, se é que se pode chamar de ‘ordem’ um sistema tão injusto, foi e continua a ser marcada por todo tipo de violência. “As inimagináveis catástrofes espalhadas pela Europa durante sua conquista do mundo e a violência que infligiu sobre suas próprias populações através dos séculos, notavelmente às mulheres e às minorias, são traumas sentidos pelas gerações de hoje”. Assim, torna-se compreensível a atual cultura do cancelamento. “As classes dominantes adoram a cultura ocidental como um objeto sagrado e, portanto, intocável” (p. 105-06).
Walter Benjamin foi um dos autores que colocou a cultura como herança sob julgamento em suas Teses sobre a filosofia da história. Ele viu a história como “uma procissão triunfal na qual todos os dirigentes são os herdeiros da cultura anterior” que eles tratam como despojos. Para Walter Benjamin, todas as grandes obras de cultura tem uma base nos bárbaros. Não há Virgílio sem o Império Romano, não há Michelangelo sem o papado. Walter Benjamin, porém, adverte que todas as grandes obras devem ser vistas com uma “consideração cautelosa”, ou seja, com desconfiança quanto a seu caráter sagrado.
É compreensível que a cultura do cancelamento reaja contra o caráter sagrado, hierárquico e antidemocrático da cultura ocidental. Cujos grandes personagens, muitas vezes, foram heréticos no seu tempo, como Voltaire ou Sartre, ou não foram democráticos, como Goethe, Renan ou Thomas Mann. Mas a cultura do cancelamento é inaceitável.
A partir de sua consideração cautelosa, Walter Benjamin propõe para a cultura ocidental a abordagem do filologista, que não hierarquiza ou sacraliza, mas pergunta “como foi feita essa obra?” Pierre Vesperini afirma que a partir dessa abordagem podemos chegar ao ‘humanismo cultural’, que procura entender o passado sem o instrumentalizar ou o dominar. Como propôs Charles Péguy, “busca aproximar-se do texto como se nada houvesse ele e você” (Obras Completas, 1913 [1992]: 200). É a abordagem filológica.
Finalmente, Pierre Vesperini vê uma terceira camada na cultura Ocidental, que se soma à camada eclesiástica e à capitalista – a camada da emancipação, que surgiu nos séculos XVIII e XIX. “Emergiu no período em que a crença na outra vida e principalmente a crença no inferno entraram em declínio… crenças que eram ferramentas fundamentais de dominação”. E ele observa: “Por algum tempo, o projeto capitalista e o projeto emancipatório se uniram contra a ordem cristã, uma aliança que produziu a Revolução Francesa. Mas essa aliança se desmanchou quando a nova ordem capitalista recusou a garantir emancipação econômica e social” (p. 113-114).
A guerra de 1914 acabou com o universalismo europeu. Já por volta de 1900, a cultura ocidental estava definindo os ‘inimigos internos’, principalmente a raça. Uma cultura do cancelamento reacionária se formou então, que definiu o inimigo interno como o humanismo cultural, fruto da emancipação.
Um cancelamento que foi também empreendido pelos cristãos na Idade Média, mas Carlos Magno impediu que fosse bem-sucedido quando decidiu fundar o seu governo em textos em latim, em uma época em que se tentava impedir a produção de textos naquela língua. Na verdade, a formação de um novo cânon jamais foi acompanhada pela aniquilação da cultura anterior.
O que acontecerá agora? Diz Pierre Vesperini que “todos sabemos a importância de uma consciência reflexiva do passado na vida do indivíduo. E o mesmo vale para as sociedades… O indivíduo não é apenas uma engrenagem no sistema. Ele se maravilha com teorias filosóficas, obras primas de poesia, música e arte, que podem lhe dar sentido para a vida” (p. 117).
O capitalismo buscou nos convencer que não somos nada mais do que matéria e interesses materiais. “Mas os humanos são acima de tudo almas… Uma alma é um impulso que é ao mesmo tempo lúdico, estético e epistemológico: nós queremos brincar, criar, sentir e nos maravilhar; nós queremos procurar, descobrir e saber. E queremos faz isto na companhia de outros.” (p. 118).
Uma bela conclusão, embora um pouco individualista demais. Pierre Vesperini não esquece a sociedade, o indivíduo parece estar no centro do seu pensamento. Eu mesmo desconfio do individuo e da ideologia do individuo, o individualismo liberal. Mas “Como ler o passado” é um belíssimo ensaio – tão instigante que me levou a escrever este comentário. Não é possível cancelar o passado, muito menos sacralizar o presente, sacralizar a cultura ocidental capitalista que resiste à emancipação e à democracia.
* Luiz Carlos Bresser-Pereira, professor emérito da Fundação Getúlio Vargas onde pesquisa e ensina teoria econômica e teoria política desde 1959. Foi Ministro da Fazenda (1987) e Ministro da Administração Federal e Reforma do Estado (1995-98). É doutor honoris causae pela Universidade de Buenos Aires (Do A Terra É Redonda)
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