Eternas bruxas
Publicado em 16 de janeiro de 2025
Por Jornal Do Dia Se
* Andrei Albuquerque
Um psicanalista seria bastante ingênuo se acreditasse na ideia de um progresso regular da aventura humana. Seria como se não tivesse lido “O mal-estar na cultura”, o ensaio de Freud, durante os seus tenros anos de formação, ou devesse ingressar nos batalhões da escola estadunidense da psicologia positiva. O que não significa que o psicanalista desconsidere o poder subversivo e criador do desejo que irrompe nas análises, nas ruas, nas artes e nas revoltas – além de que a incompletude que aperta o peito parece encontrar algum oásis fugidio somente no amor.
Não se trata de adotar um pessimismo juvenil, mas de saber que o que há de incrível no humano pode ser encontrado no um-a-um de cada vida e de como a junção de uns pode ser o céu ou o inferno de outros. A bem da verdade, a vida não se reduz a nenhuma oposição binária pura e simples, a vida é de uma inconstância, de uma impermanência transformadora.
Por isso, um dos efeitos de uma temporada em uma análise seria a saída de uma oposição sofredora para um acolhimento mais leve da inconstância que o sujeito desconhece em seu inconsciente, em seu ser.
Mas sim, infernizar a vida do outro é algo bem concreto em nosso mundo, os séculos foram testemunha ocular de toda a dominação sobre a mulher e seu corpo, sobre o corpo do outro, do estrangeiro, considerado como inferior de alguma maneira. Por exemplo, a perseguição às bruxas durou até meados do século XVIII chegando aos EUA no famigerado episódio das bruxas de Salem, cidade estadunidense, em que homens também foram executados por bruxaria – aos curiosos indico “A história da bruxaria” de Jeffrey B. Russel e Brooks Alexander. Foi uma perseguição alimentada pelo obscurantismo da época, depois viriam outras “bruxas” como os negros, os imigrantes e o comunismo imaginário, esse último alimenta os arroubos de reacionários atuais que parecem sonhar com um conservadorismo que era hegemônico há uns 50, 70 anos, porém alguns chegam a aspirar à criação de um novo medievalismo moral. Parecem clamar por um retorno de um pai tirânico que puna os inimigos como o Deus do Antigo Testamento, diferente do Pai amoroso pregado pelo Cristo que em algumas parábolas recentes se assemelha mais a um coach a serviço do mercado e da intolerância religiosa, moral e de gênero.
Exagero? O retorno de Trump e o anúncio da Meta – empresa que engloba Instagram, Facebook, Whatssap do bilionário Zuckerberg – podem indicar que um novo retrocesso tendo como uma de suas “bruxas” o gênero que esteja fora de uma performance padronizada própria a homens e mulheres cis já que a sexualidade e a pornografia ficaram mais reduzidas a um produto do que a um incômodo social, porém um sintoma atual é a compulsão à pornografia como um dos efeitos de status de produto. O clamor de Zuckerberg por “mais energia masculina nas empresas” pode ter um objetivo mais lucrativo do que moralista, afinal um ambiente de trabalho tóxico pode favorecer a exploração pelo capital minimizando o seu efeito adoecedor sobre o trabalhador mais precarizado. No entanto, essa suposta “energia masculina” também serve a interesses morais e políticos.
Assim, que os oprimidos, as “bruxas”, questionem os afagos dos poderosos, pois para os donos do poder qualquer retrocesso pode ser sempre uma opção lucrativa. Portanto, seria melhor alimentar alguma inconstância na alma diante das certezas supostamente universais.
Em um ensaio, o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro conta que os Tupinambá resistiam à catequização dos jesuítas que queriam impor o seu Deus e sua Weltanschauung (visão de mundo) aos indígenas, porém fracassavam constantemente… A inconstância também pode ser uma forma de resistência diante de certezas colonizadoras!
* Andrei Albuquerque, Psicanalista e psicólogo. Mestre em psicologia social/UFS. Publicou dois livros, artigos e textos em jornais.