FUNDEB e suas condicionalidades
Publicado em 05 de janeiro de 2022
Por Jornal Do Dia Se
O critério fundamental para determinar o volume de recursos do FUNDEB para cada ente sempre foi a matrícula, aferida pelo Censo da Educação
*Josué Modesto dos Passos Subrinho
Desde a implantação do Fundo de Desenvolvimento e
Manutenção do Ensino Fundamental e de Valoriza
ção dos Professores (FUNDEF), em 1996, o caráter automático e obrigatório das transferências de recursos recolhidos do estado e dos seus municípios e sua redistribuição para ambos, segundo o número de estudantes matriculados, impôs-se de forma tão plena que mesmo para os principais beneficiários se revestiu do caráter mágico da ciência moderna. Ninguém precisa conhecer os fundamentos científicos da eletricidade para acionar um interruptor e acender uma lâmpada.
A complementação do Governo Federal sempre foi inferior ao montante de recursos aportados pelos estados e pelos municípios. Mas o fato de a legislação ter se originado na instância federal, impondo regras a eles encobriu o fato de termos 27 fundos, organizados pelos estados e seus municípios. Talvez para legitimar a intervenção federal em outras instâncias se previu uma complementação de recursos federais para os fundos que não atingissem um valor mínimo, fixado nacionalmente, por estudante matriculado.
O FUNDEB (2006-2020), sucessor do FUNDEF, manteve a característica quanto às transferências automáticas entre os entes da Federação. Para os que imaginam que esta qualidade é atributo universal dos fundos contábeis, podemos contrapor com o exemplo, entre muitos outros, do Fundo para Universalização dos Serviços de Telecomunicação (FUST), cujos recursos são liberados sem qualquer previsibilidade.
Não seria justo transmitir a ideia de que os entes da federação recebem recursos do FUNDEB sem qualquer contrapartida no atendimento de exigências previstas em lei. O critério fundamental para determinar o volume de recursos para cada ente sempre foi a matrícula, aferida pelo Censo da Educação. Quanto às despesas que poderiam ser cobertas pelos fundos, desde o pioneiro FUNDEF, foram estipuladas pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional que tipificou exaustivamente as despesas que seriam quitadas pelos recursos constitucionalmente vinculados à educação e, mais ainda, listou despesas que não podiam ser custeadas por aqueles recursos. Sob o aspecto do controle do gasto, além do escrutínio dos órgãos de controle, estabeleceu conselhos de controle social e fixou sub vinculações para grupos de despesas.
O fato é que as prefeituras e alguns estados puderam contar com a transferência automática, em datas previamente fixadas, de recursos anualmente estimados e corrigidos em prazos determinados para custear parte importante de suas despesas com manutenção e desenvolvimento da educação. Explica-se, portanto, a significativa expansão da matrícula na Rede Pública da Educação Básica. Se a receita tributária crescia, como foi o caso desde a última década do século XX até aproximadamente 2015, os recursos destinados à Educação Básica cresciam automaticamente. O pires e seus custos de circulação por Brasília e outras praças não condicionou a disponibilidade de recursos para a educação.
O Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) também desenvolveu programas suplementares de apoio à Educação Básica, de caráter universal, com regras claramente estabelecidas e transferências automáticas aos entes da federação, a exemplo do Programa Nacional do Livro Didático, Programa Nacional de Alimentação Escolar e Programa Nacional de Transporte Escolar. É possível que ao lado da consolidação institucional, a estabilização das cúpulas dirigentes do Ministério da Educação, que teve apenas um ministro durante os dois mandatos do Presidente Fernando Henrique Cardoso e três durante os dois mandatos do Presidente Lula, tenha contribuído para práticas mais estáveis nas políticas educacionais federais. Os mandatos da Presidente Dilma e do Presidente Michel Temer apresentaram períodos mais curtos dos titulares do MEC, convivendo, contudo, com uma estabilidade das principais políticas educacionais.
O desejo de aumentar o grau de discricionariedade na liberação dos recursos públicos, condicionando-a aos desígnios do jogo político partidário sempre esteve em pauta e encontrava guarida nas liberações de recursos voluntários. De uma maneira geral, este período pareceu ser o de relativamente pequena utilização dessa via quando comparada com as transferências automáticas.
Sob o ponto de vista do funcionamento das instituições republicanas dedicadas à educação e sob o aspecto da democratização do acesso à Educação Pública Básica o último quarto de século foi exemplar. Não se deve imaginar, entretanto, que aqueles fundos e políticas correlatas de transferência automática de recursos para programas universais não sofresse críticas. Uma das principais vertentes das críticas diz respeito à fraca correlação entre a ampliação da disponibilidade de recursos dedicados à educação e a evolução da qualidade da aprendizagem aferida em testes de larga escala, os quais eram também, novidades entre nós. Especialmente o Ensino Médio e os anos finais do Ensino Fundamental não conseguiam, no âmbito nacional, atingir metas de desempenho fixadas. Outra vertente crítica diz respeito à constatação que estamos passando por uma transição demográfica com a consequente redução da população em idade escolar e, portanto, seria inconveniente a manutenção das vinculações automáticas de recursos públicos para financiamento da Educação Básica.
No outro lado do espectro político, educadores, movimentos sindicais e defensores da ampliação da escola pública chamavam a atenção para a baixa escolarização da população de uma maneira geral, das precárias condições de funcionamento de boa parte das escolas e da insuficiente remuneração do(a)s professore(a)s quando confrontada com a de outros profissionais com formação no ensino superior. Insistiam, portanto, na necessidade de garantir a continuidade da vinculação de recursos para a educação básica, na perseguição de condições que garantissem um padrão mínimo de qualidade e pleiteavam maior participação do governo federal, sem a qual tais objetivos não seriam atingidos.
A Emenda Constitucional 108/2020, que tornou o FUNDEB permanente e o reformulou, foi aprovada com ampla maioria em ambas as casas do Congresso Nacional, não obstante sua colisão com a orientação do Ministério da Economia que apresentara proposta de Emendas Constitucionais com o propósito de desvincular recursos orçamentários e reduzir os compromissos do Estado com a expansão dos gastos públicos.
As principais características do novo FUNDEB que foi criado pela Emenda Constitucional 108/2020 e pela Lei nº 14.113, de 25 de dezembro de 2020, que o regulamentou são: a) caráter permanente, ao contrário do prazo fixado que caracterizou seus antecessores, b) manutenção do critério de distribuição dos 10% da complementação do Governo Federal aos estados, conforme já estabelecido no antigo FUNDEB , C) maior contribuição do Governo Federal que atingirá o total de 23% do total dos fundos, d) distribuição de recursos do Governo Federal para os municípios ou redes estaduais com menores disponibilidades, através da chamada parcela Valor Aluno Ano Total (VAAT), e) estabelecimento de condições para melhor gestão das redes, atingimento de metas de qualidade e de equidade para acesso a uma nova parcela o Valor Aluno Ano de Referência, cuja distribuição começará em 2023.
O impacto da primeira distribuição da parcela VAAT para os sete municípios sergipanos cujos repasses per capta destinados à educação os habilitaram a receber a complementação do Governo Federal já foi objeto de artigo anterior. Do ponto de vista educacional, os municípios que estão em patamares próximos ao nível que determina a liberação automática de recursos do Governo Federal precisam apenas cuidar de manter e, sempre que possível, expandir a matrícula em suas escolas, o que leva, tudo o mais constante, a redução do Valor Aluno Ano Total. Há uma expectativa de que as crescentes contribuições do Governo Federal a essa parcela do FUNDEB levarão um maior número de municípios sergipanos a terem acesso aos recursos.
A parcela VAAR (Valor Anual por Aluno) tem uma característica muito distinta. Para a habilitação dos entes, muito esforço e mudanças legais precisam ser feitas, ou seja, essa é permeada de condicionalidades que foram inseridas em decorrência do debate sobre os efeitos do FUNDEB. Não nos parece que estejamos nos preparando devidamente para o desafio de acessar esses recursos. Trataremos da exposição do conteúdo e das tarefas que nos impõe se quisermos acessas essa nova importante fonte de financiamento da Educação Básica brasileira, no próximo artigo.
*Josué Modesto dos Passos Subrinho é secretário de Estado da Educação, do Esporte e da Cultura – Seduc -, e foi reitor da Universidade Federal de Sergipe e da Universidade Federal da Integração Latino-Americana no Paraná.