O mito do desenvolvimento econômico
Publicado em 23 de outubro de 2024
Por Jornal Do Dia Se
Considerações sobre o livro de Celso Furtado. Para o economista, o capitalismo que surgiu depois da Segunda Guerra Mundial caracterizou-se pela unificação do centro, sob o comando dos Estados Unidos
* Luiz Carlos Bresser-Pereira
Em 1974, quando Celso Furtado publicou O mito do desenvolvimento econômico, ele estava preocupado com o problema dos recursos naturais não-renováveis que estabeleciam um limite para o crescimento da renda e do consumo no mundo – preocupação que se apoiava no livro recém-publicado, The limits of growth, preparado por um grupo interdisciplinar do M.I.T. para o Clube de Roma.[i]
No primeiro ensaio, que é também o mais importante do livro, o autor discute as mudanças que vêm ocorrendo no capitalismo e, em particular, o papel das grandes empresas, as corporações, nesse capitalismo. Mas esta discussão tem como objetivo mostrar como o caminho do desenvolvimento capitalista estava se transformando em um mito.
Logo no início do livro, Celso Furtado cita mitos como o do bon sauvage de Rousseau, a ideia do desaparecimento do Estado de Marx, a concepção walrasiana do equilíbrio geral, e afirma que “os mitos operam como faróis que iluminam o campo de percepção do cientista social, permitindo-lhe ter uma visão clara de certos problemas e nada ver de outros, ao mesmo tempo que lhes proporciona conforto, pois as discriminações valorativas que realiza surgem ao seu espírito como um reflexo da realidade objetiva” (p. 15).
A questão que Celso Furtado se põe é o que acontecerá para e economia mundial se o desenvolvimento econômico, que desde a Segunda Guerra Mundial se tornou o objetivo para o qual se voltam todos os povos, vier a ser bem-sucedido e lograr estabelecer um padrão de vida semelhante ao existente no mundo rico para todos. E sua resposta é clara: “se tal acontecesse a pressão sobre os recursos não-renováveis e a poluição do meio ambiente seriam de tal ordem que o sistema econômico mundial entraria necessariamente em colapso” (p. 19). Bastaria substituir ‘poluição’ por ‘aquecimento global’ e o problema se agravaria muito.
Para ele, seria ingênuo acreditar que o progresso tecnológico resolveria o problema. Sua aceleração está antes o agravando do que o resolvendo.
Para Celso Furtado, o capitalismo que surgiu depois da Segunda Guerra Mundial caracterizou-se pela unificação do centro, sob o comando dos Estados Unidos. Já se esboçava então, pela ação persistente do GATT, o processo de liberalização comercial que ganharia força total com a virada neoliberal de 1980. Ele observa que “não pode se afirmar que as transformações estruturais que então aconteciam hajam sido desejadas e muito menos planejadas pelos centros econômicos e políticos dos Estados Unidos” (p. 36). Foram antes pensadas, acrescentaria eu, por economistas neoclássicos e da escola austríaca que haviam ficado fora do mainstream acadêmico em 1930, ansiavam pela volta ao poder nas universidades. Eles encontraram um espaço favorável criado pela crise dos anos 1970.
Celso Furtado dá grande importância ao surgimento das grandes empresas internacionais e suas novas relações com a periferia. Ele afirma que “a evolução do sistema capitalista, no último quarto de século, caracterizou-se pela homogeneização e integração do centro, um distanciamento crescente entre o centro e a periferia e uma ampliação considerável do fosso que, dentro da periferia, separa uma minoria privilegiada e as grandes massas da população” (p. 46).
O pós-guerra foi um período de crescimento no centro e na periferia. “A intensidade do crescimento no centro condiciona a orientação da industrialização na periferia, pois as minorias privilegiadas desta última procuram reproduzir o estilo de vida do centro” (p. 46). Esta é uma afirmação que Celso Furtado repetirá muitas vezes em toda a sua obra. Para conquistar e manter esse privilégio, estas minorias passarem a se associar antes com a maioria privilegiada do centro do que com seus concidadãos. Dessa maneira, perdido o apoio da classe média e mesmo dos empresários industriais, o nacionalismo econômico ou desenvolvimentismo, que caracterizara o Brasil desde os anos 1930, começava a ser ameaçado.
Mas Celso Furtado está então mais preocupado com a pressão que o desenvolvimento no centro e na periferia estava fazendo sobre os recursos não-renováveis. Esta pressão decorre principalmente do consumo crescente de toda a população. Ele faz, então, uma série de cálculos sobre o montante desse consumo nos anos 1970 – nos quais ele estava.
Preocupa-se com a tendência da minoria privilegiada na periferia que representava 5% da população de mudar para 10%, e preocupa-se muito mais com a hipótese da homogeneização do consumo para todo o mundo. “A hipótese de generalização, no conjunto do sistema capitalista, das formas de consumo hoje prevalescentes nos países cêntricos não tem cabimento dentro das possibilidades evolutivas aparentes desse sistema… O custo, em termos de depredação do mundo físico, desse estilo de vida é de tal forma elevado que toda tentativa de o generalizar levaria inexoravelmente ao colapso de toda uma civilização” (p. 75).
É a partir daí que Celso Furtado conclui que o desenvolvimento econômico é um mito. “Sabemos agora de forma irrefutável que as economias da periferia nunca serão desenvolvidas, no sentido de similares às economias que ia o atual centro do regime capitalista. Cabe, portanto, afirmar que a ideia do desenvolvimento econômico é um simples mito” (p. 75).
Note-se que o mito não é o próprio desenvolvimento econômico, mas a “ideia” de que o desenvolvimento incluindo o alcançamento possível para os países da periferia do capitalismo. Esta ideia é uma parte importante da ideologia neoliberal que o centro transfere para a periferia. Se o Sul Global adotar o liberalismo econômico e rejeitar o desenvolvimentismo, ele estaria no caminho do melhor dos mundos possíveis do Dr. Pangloss.
Não estaria Celso Furtado sendo pessimista nessa matéria? Creio que sim. Para chegar à sua conclusão, ele se baseou em uma hipótese que não está se realizando e não terá condições de se realizar. Um grande número de países não está realizando o alcançamento (o catching up) aos níveis de desenvolvimento do centro. Desta maneira, a ideia de que todos os países se desenvolveriam e alcançariam o nível dos mais desenvolvidos, que é a base do seu argumento sobre o mito, jamais se realizarão.
Não importa aqui discutir as causas desse fracasso; afirmo apenas que elas incluem o imperialismo do Norte Global e sua determinação de impedir que os países periféricos se industrializem e realizem o alcançamento. Além disso, é preciso considerar que, passados 50 anos, os recursos naturais reprodutivos não deram sinal de esgotamento não obstante os abusos a que foram submetidos.
O desenvolvimento econômico não é, portanto, um mito, mas uma ideia força que orienta os povos e os governos. Ele continua a ser possível – ou continuava na época em que Celso Furtado escreveu. Depois disso, porém, surgiu um novo e muito grave problema que talvez confirme o limite ao crescimento: o aquecimento global, que representa uma ameaça à sobrevivência da humanidade. Este problema surgiu do aumento da produção global por habitante – do desenvolvimento econômico, portanto.
E levou certo número de intelectuais a defender o decrescimento. Mas essa tese não encontrou nenhuma repercussão no mundo político. Porque mesmo nos países ricos há ainda muito pobres. E também por uma razão objetiva; para lutar contra o aquecimento global os indivíduos precisam mudar seus hábitos de consumo (comer menos carne, viajar menos, cultivar sobriedade no consumo), que não exigem investimentos.
Já os países precisam fazer grandes investimentos na transição energética na mudança das máquinas, equipamentos e imóveis para que consumam menos energia. O desenvolvimento econômico torna-se, assim, o instrumento para o problema – o aquecimento global – que ele próprio criou.
Celso Furtado foi o maior dos economistas brasileiros, ainda que suas ideias tenham deixado de coincidir com a política econômica que passou a ser praticada no Brasil a partir de 1990, no governo Collor, quando este promoveu a abertura econômica e a financeira. Seu protesto surgiu cedo, com seu livro de 1992, A construção interrompida.
Dez anos depois, para explicar como o desenvolvimento econômico foi então interrompido, eu e um grupo de economistas brasileiros começamos a definir o “novo desenvolvimentismo”, uma nova teoria econômica e economia política baseada no desenvolvimentismo estruturalista de Celso Furtado e na teoria econômica pós-keynesiana. Para nós o desenvolvimento econômico não é um mito; é algo que pode ser alcançado. Já a ideia do desenvolvimento é um mito porque o alcançamento que o mito propõe estar acontecendo não está na verdade se realizando, exceto em alguns países do Leste, Sudeste e Sul da Ásia.
* Luiz Carlos Bresser-Pereira, professor emérito da Fundação Getúlio Vargas onde pesquisa e ensina teoria econômica e teoria política desde 1959. Foi Ministro da Fazenda (1987) e Ministro da Administração Federal e Reforma do Estado (1995-98). É doutor honoris causa pela Universidade de Buenos Aires (Do A Terra É Redonda)