O vinho dos "camponeses preguiçosos"
Publicado em 28 de janeiro de 2020
Por Jornal Do Dia
* Antonio Passos
Chegou o tempo em que o vinho da planície tórrida passou a receber premiações internacionais. Curiosamente, ao passo que crescia a fama da bebida, foi disseminada uma mitologia atribuindo às mulheres e homens empregados no processo de produção, desde o cultivo das uvas ao trabalho na vinicultura, a pecha de "camponeses preguiçosos".
Tudo começou quando uma empresa estatal desenvolveu uvas que poderiam ser cultivadas em regiões áridas e de clima quente, desde que devidamente irrigadas. Na época, o governo estava nas mãos de um preposto dedicado a manter e alargar privilégios. Logo, um grupo de "grandes investidores" foi convidado para gerenciar o negócio das uvas em terras secas. Tudo seria subsidiado pelo estado, um butim tão garantido quanto tomar o pirulito de uma criança. Porém, havia camponeses no meio do caminho.
Pesquisas demonstraram que a localização ideal para a empreitada era uma região com pequenos cercamentos rurais, próxima a um largo rio. Uma terra abandonada por séculos, para a qual os ancestrais dos atuais ocupantes foram enxotados. Lá se estabeleceram e subsistiram pescando, caçando, cultivando pequenas roças, criando bodes e carregando latas de água na cabeça. Nessa pisada, a posse da terra foi transmitida de geração a geração. Afugentá-los foi uma primeira sugestão. Porém, estava em curso no país um processo de despertar democrático. Considerando toda essa balbúrdia – diziam os burocratas da vez – era melhor traçar e executar um dissimulado plano.
A comunidade camponesa foi então assediada pela propositura de um milagroso benefício. Todos seriam treinados para o cultivo de uvas e a posterior fabricação de vinhos. O governo instalaria o sistema de irrigação, prepararia a terra, abriria as estradas para o escoamento da produção e tudo isso com assistência técnica qualificada. O maquinário seria financiado e os camponeses apenas pagariam suaves prestações quando já estivessem produzindo e com suas contas bancárias bem recheadas – sim, todos teriam que abrir contas bancárias!
Quando a infraestrutura restou instalada o novo cultivo começou. Contudo, algum pulo do gato não era repassado aos camponeses. Uma hora era um dado inesperado sobre a salinidade do solo, outra hora alguma inadequação das propriedades da água… Quando as primeiras e mirradas uvas foram colhidas apresentaram uma acidez imprópria… Chegou enfim o dia no qual todos estavam endividados e recebendo esclarecedoras visitas de oficiais de justiça.
Todavia, caiu do céu uma solução. O grupo benevolente dos "grandes investidores" citado no segundo parágrafo entrou em cena e aceitou quitar as dívidas bancárias em troca da propriedade das terras. Ainda prometeram manter o investimento e, caso viesse a prosperar, empregariam alguns dos camponeses treinados pelo governo. Muitos nativos resistiram e até se revoltaram, mas, só por algum tempo. Pouco a pouco, um a um, todos os quinhões de terra foram "negociados". Para gerar empregos e conter a miséria social o governo também fez a sua parte: isentou, semanas depois, os investidores de pagar as dívidas contraídas pelos camponeses.
Agora, já não havia mais nenhum pulo do gato escondido. A planície tórrida começou a produzir uvas viçosas e logo em seguida vinhos da melhor qualidade. Sempre que alguém procurasse saber daquela história haveria um distinto senhor disposto a contá-la, não em voz muito alta: "o governo fez e deu tudo isso aqui de mão beijada aos camponeses, mas, essa gente é muito preguiçosa e sem iniciativa, aí, em vez de trabalhar, começaram a vender as terras"… "Foi quando vieram esses empresários de longe e compraram tudo"… "Agora é essa maravilha que vocês estão vendo e ainda deram emprego para os miseráveis que depois de vender a terra, torraram o dinheiro e ficaram sem nada"…
* Antonio Passos é jornalista