SILVÉRIO FONTES E O COMPLEXO DE INFERIORIDADE DO SERGIPANO
Publicado em 17 de janeiro de 2025
Por Jornal Do Dia Se
* Afonso Nascimento
“A formação do Povo Sergipano” é o livro no qual José Silvério Leite Fontes (1924-2005) discute a identidade sergipana, que é, ainda hoje, o melhor texto sobre o assunto. A concepção de identidade sergipana de Silvério Fontes foi escrita em 1973. Ela foi apresentada em forma de palestra.
Não consegui saber se foi Silvério Fontes quem escolheu o tema da identidade sergipana ou se lhe foi dado o tema. O que importa por ora, todavia, é que, escolhendo o tema, Silvério Fontes toma Prado Sampaio como seu adversário teórico, a quem descarta rapidamente e sem levar em consideração a sua contribuição.
Silvério Fontes escreveu “A Formação do Povo Sergipano” aos 49 anos de idade. Qual é a ideia de identidade sergipana para esse jurista e historiador? A sua teorização é sociológica e histórica, como ele mesmo escreve. Mas ele não está baseado em fontes empíricas. Para fins deste artigo, suas ideias foram reunidas por mim em quatro blocos de ideias, a saber, as ideias históricas, as ideias filosóficas, as ideias sociológicas e as ideias psicológicas.
Optei por começar pelas ideias históricas da identidade sergipana para aqui destacar o fato de Silvério Fontes não citar nenhum historiador, nem qualquer fonte empírica nessa parte de seu ensaio. Todavia, é a partir de sua condição de historiador que menciona fatos e processos importantes para uma construção histórica da identidade sergipana, um trabalho até esta data não foi realizado. Quais são esses fatos e processos?
Sem pretender apresentá-los de forma integral, aqui estão eles: autonomia relativa de que foi dotada a capitania de Sergipe Del Rey desde a sua criação, a centralidade do Estado, as guerras e os conflitos, a ruptura dos laços com a Bahia, o desenvolvimento da economia dos minérios e a emancipação cultural com a introdução do ensino superior em Sergipe.
Como Silvério Fontes não escreveu essa parte apoiado em fontes empíricas, não será feita uma análise detalhada dos fatos e processos mencionados, embora se deva admitir que, por aí, estão uma contribuição e um caminho bem operatórios para uma explicação histórica da identidade sergipana.
É importante ainda mencionar o fato de Silvério Fontes enquadrar o estudo sobre a identidade sergipana como parte da história regional ou sub-regional. Para quem se interessa pelo assunto, convém lembrar que o autor escreveu um artigo sobre o Nordeste e uma resenha sobre a nação brasileira, tratando do livro famoso de Manoel Bonfim.
No nível sociológico está a primeira grande contribuição de Silvério Fontes. O autor com quem Silvério Fontes trabalha é Jean-Thomas Delos, sociólogo e padre dominicano com intensa militância na Europa e no Canadá francês. Ele diz que são “várias as fórmulas de diferenciação nacional” e que tratará de dar uma “explicação histórico-sociológica sobre o grupo sergipano”, o que significa dizer uma diferenciação enquanto identidade sergipana. Discute então o que é uma sociedade.
Rompendo assim com a visão ratzeliana e spenceriana de sociedade de Prado Sampaio (indivíduo e natureza), Silvério Fontes coloca a discussão em termos sociológicos corretos, a saber, a relação entre indivíduo e sociedade. Para ele, “o indivíduo nunca se desenvolverá como indivíduo humano sem a sociedade”. É através da linguagem que o indivíduo desenvolve “as potencialidades de seu pensamento “na interação com outros indivíduos.
Esse indivíduo é um ser racional e tem vontade própria. Essas características são comuns a todos os indivíduos. A sua substância e a sua natureza não são fechadas e só podem ser partilhadas pela linguagem, através de atos contingentes, “inseridos nas condições do tempo e do espaço e das situações organo-psíquicas”. O lado coercitivo do social e dos sinais que transmitem aos indivíduos através da socialização em instituições é condensado nas ações dos indivíduos. Essas ações dos indivíduos se objetivam, formando um feixe de relações que é a própria sociedade – que age de volta sobre os indivíduos.
Fechando a explicação, Silvério Fontes diz que uma coletividade regional é “um complexo de vivências como uns dos seus membros”. Adiante arremata afirmando que os indivíduos “realizam o destino humano em comum e o que é de um é, por essência, também dos outros”.
Na parte filosófica, quando trata especificamente do conceito de identidade, Silvério Fontes afirma que “a geração do sentimento da própria identidade segue o curso delineado pela estrutura ontológica do ser humano, que se estende a suas manifestações psíquicas e sociais”.
Destaca que o “princípio da identidade é fundamental para o conhecimento e a distinção dos entes”. Para ele, identidade é semelhança (ou o ser é o ser), embora se esprima, cognitivamente, pelo não-ser ou pela contradição. Existiria, por assim dizer, uma essência universal própria a todos os indivíduos e que poderia tomar formas concretas diferentes. Não trabalha com a diferença como fundante da identidade, como feito pelos filósofos da diferença na linhagem de Heidegger, Foucault, Deleuze, etc.
Silvério Fontes leva a mesma discussão da identidade para o psiquismo humano, apoiando-se em autores como Henri Wallon e Édouard Pichon. Diz que a identidade coletiva se assemelha à construção do Eu dos indivíduos, que ocorre quando tem lugar uma diferenciação dele em relação às coisas e às pessoas. Concluindo, ele parece apontar para uma concepção da identidade (sergipana) tendo como fundamento os conflitos, daí derivando uma consciência coletiva e um sentir coletivo ou de uma consciência ciente.
É assim que ele chega – depois dos seus registros mencionados – ao famoso “complexo de inferioridade” dos sergipanos. Aqui, basicamente, ele radicaliza a tese do “acanhamento” do jurista Prado Sampaio (1865/1932). Não seria “acanhamento”, mas “inferioridade”. Essa “inferioridade” se expressa no ressentimento – um conceito buscado em Max Scheler – dos sergipanos. Ele exclui a ideia de “audácia” também presente em Prado Sampaio, como outro traço do caráter identitário sergipano. É por conta desse complexo que os sergipanos seriam sempre dependentes da aprovação dos outros, do reconhecimento externo – como pode ser percebido na valorização dos grandes sergipanos que fizeram sucesso em outras partes do Brasil.
Bem dentro de uma perspectiva de filosofia histórica, ele se pergunta sobre a missão dos sergipanos para o seu futuro. Em suas palavras, “o sergipano será consciente de suas potencialidades como coletividade e não somente por meio de expressões individuais?”.
Aqui, se Silvério Fontes já havia rompido antes com Prado Sampaio na glorificação dos grandes nomes sergipanos e com o seu enfoque evolucionista e determinista, ele propõe pensar, corretamente, a identidade sergipana em termos de coletividade e faz a sua aposta numa identidade sergipana positiva para que “na produção científica, artística e filosófica, assim como na ação política, educacional e empresarial, possam desenvolver as potencialidades historicamente contidas no hoje sergipano” com objetivo de “fazer de nossa terra um centro de poder e de cultura irradiante”.
Embora a concepção de identidade sergipana de Silvério Fontes pareça ter desembocado, parcialmente, numa estrada psicológica, ela é a melhor direção para continuar e aprofundar os estudos acadêmicos sobre o assunto. Nem por isso deve-se deixar de lembrar problemas como a falta de uma discussão sobre as classes sociais, a omissão do debate sobre o passado escravista sergipano (e, portanto, sobre as suas raças ou etnias) e uma discussão sobre as religiões no processo de construção dessa mesma problemática identidade sergipana.
* Afonso Nascimento, professor de Direito da UFS
Obras consultadas:
ALVES, Francisco José. Mestre José Silvério Leite Fontes – 45 anos de magistério. Disponível em Fjalves.Com. Site do professor Francisco Alves de Aquino. Acesso em 16 de janeiro de 2025.
BARRETO, Luís Antônio. A Formação do Povo Sergipano. Disponível em http://www.pinfonet.com.br/luisantoniobarreto/ler.asp?id=24519&am
p;titulo=Luis_Antonio_Barretop. Acesso em: 14.08.2011.
DANTAS, Ibarê. Trajetória de José Silvério Leite Fontes. Disponível
em:http://psilveriofontes.com.br/curriculum.html. Acesso em 14.08.2011.
FREITAS, Itamar. Historiografia Sergipana. Aracaju: Editora da UFS, 2007. Ver capítulo: “Silvério Fontes, outra vez”.
MENESES, Ademir Pinto de. José Silvério Leite Fontes. Uma contribuição à Historiografia de Sergipe. São Cristóvão: Monografia/Departamento de História, 1998.
NASCIMENTO, Afonso. Elites intelectuais e construção da identidade sergipana: os casos de Prado Sampaio e Silvério Fontes. Aracaju: mimeo, 2011.