DESIGUALDADE
Publicado em 06 de março de 2024
Por Jornal Do Dia Se
* Carlos Morais Vila-Nova
Determinadas músicas impactam significativamente as percepções humanas. Na verdade, letra e melodia harmonizadas expressam com poucas palavras o que se escreve em muitas páginas de um livro. Assim, o cantor e compositor Gilberto Gil vêm entoando há muito tempo a música “A Novidade”: […] Oh mundo tão desigual, tudo é tão desigual, de um lado esse carnaval, do outro a fome total […]
A desigualdade musicada por Gil consiste em vários aspectos. Mas, a do cenário socioeconômico se destaca, sobretudo pelas disparidades gigantes observadas. Decerto que ela existe no mundo afora; mas, particularmente no Brasil,a desigualdade social persiste enraizada, desde o seu descobrimento, chegando até aos dias atuais, de forma acentuada.
Sobre o tema, o livro “Cidadania no Brasil- O longo caminho”, do historiador José Murilo de Carvalho, falecido recentemente em agosto de 2023; apresenta um conteúdo esclarecedor, a partir do período colonial em diante, que clarifica os caminhos trilhados pela sociedade brasileira, meio às particularidades política, econômica e social.
O livro apresenta mais enfaticamente o tema da cidadania e faz menção a um “tipo ideal”, que seria o “cidadão pleno”; ou seja, aquele dotado de direitos civis, políticos e sociais (pag. 15).Porém, a desigualdade socioeconômica está no cerne da questão de forma interligada.
Historicamente, o fator mais negativo era a escravidão em grande proporção (pag. 25).Expõe Murilo Carvalho que: “O Estado, os funcionários públicos, as ordens religiosas, os padres, todos eram proprietários de escravos” (pag. 26). A escravidão penetrava em todas as classes, em todos os lugares, em todos os desvãos da sociedade: a sociedade colonial era escravista de alto a baixo (pag. 26).
Segundo o autor, o Brasil foi o último país ocidental e cristão a libertar os escravos; este fato chegou até a contrariar as ordens da poderosa Inglaterra na época (pag. 52). Deveras, embora a liberdade formal dos escravos tenha ocorrido com a Lei Áurea em 1888, a libertação substancial e total não ocorreu até hoje.
Na data da Independência, diz Murilo, que existia no Brasil uma população analfabeta, escravizada e uma economia latifundiária (pag. 24); e, oitenta e cinco por cento do povo era analfabeto (pag. 37).
Muitas páginas à frente do livro (pag. 201), Murilo clarifica que mesmo com a volta da eleição direta para presidente em 1989, a democracia não resolveu os problemas econômicos mais sérios como a desigualdade e o desemprego. Ainda, expõe na página 209 que: “[…] as maiores dificuldades na área social têm a ver com a persistência das grandes desigualdades sociais, que caracterizam o país desde a independência, para não mencionar o período colonial” […]
Na página 223, o enfoque é sobre o corporativismo, com a alusão de que essa força manifestou-se mesmo durante a Constituinte de 1988, quando cada grupo procurou defender e aumentar os seus privilégios.
Por fim, transcreve-se de Murilo de Carvalho (pag. 223) o seguinte teor: “[…] A ausência de ampla organização autônoma da sociedade faz com que os interesses corporativos consigam prevalecer. A representação política não funciona para resolver os grandes problemas da maior parte da população […]”
O livro de Murilo de Carvalho é daqueles que você começa a lê-lo e se envolve com a história, fazendo comparativos com a nossa contemporaneidade e rememorando os porquês do presente. A leitura leva à conclusão sobre a persistente desigualdade, evidenciada no Brasil, como um fenômeno social que se arrasta ao longo de vários séculos, cujas causas são as mesmas.
Observem no livro que o corporativismo aparece em vários momentos históricos, nutrido pela hegemonia de poucos em relação à maioria. Às vezes mais veladamente e em outras passagens de forma mais escancarada. Ainda, conexamente, ocorrências de manifestas omissões às carências mais elementares da coletividade, que convivem lado a lado com o aumento dos benefícios para setores, já altamente privilegiados.
Patente e não se pode olvidar que houve na história brasileira uma tamanha omissão em relação à escravidão dos negros, terminada formalmente em 13 de maio de 1888. Era desumana, uma via crucis legalizada pelo Direito da época; mas, os interesses corporativos e hegemônicos prevaleciam.
A leitura do livro de Murilo traz à tona a gigante dívida social que o Brasil tem acumulada, inclusive com os pretos e pardos; digo dessa forma, baseado na linha dos atuais conceitos do IBGE sobre os negros. Então, mesmo com as imperfeições do sistema de cotas raciais implantado, não deixa de ser uma decisão que vem de encontro às omissões seculares em relação ao coletivo.
Além do mais com a leitura, fica perceptível quão perniciosa é a desigualdade para a mobilidade social aos acessos e oportunidades.Visíveis também, historicamente, as assombrosas riquezas concentradas, que são baixamente tributadas em relação às pequenas rendas, quando não isentas; privilegiando, secularmente, a segmentos de destacados ganhos.
Por conseguinte, urge a necessidade de aplainar essa trilha histórica, encurtando a distância entre o que já está formalizado e o real. Desse modo, sem citar legislações infraconstitucionais, a Lei maior de todas, que é a Constituição Federal, assegura em seu teor (transcrito na íntegra) o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social […].
Contudo, passados mais de trinta e cinco anos da Constituição Cidadã de 1988, o abismo da injustiça social continua a manter os estigmas das misérias humanas, com os excluídos e os quase cidadãos. Nesse contexto, no entanto, ao invés de se tentar suprir ou minorar as necessidades básicas do coletivo, continuam os excessos de forma patente para as ostentações e vanglórias setoriais com recursos diretos da máquina pública.
Ao pé da letra, se houvesse punição, as lições do mestre Adolpho de Andrade Mello Junior serviriam, à luz do que ele enuncia: – ex surge a “responsabilidade” quando há agressão a um direito e a quebra dum imperativo jurídico. Dessa forma, evidente que o ensinamento do ilustre se enquadra para a questão sub judice!
O longo caminho da história brasileira, no qual prevaleceu o corporativismo, chegando aos dias atuais com pouca melhora; faz com que a representação dos poderes não funcione para resolver os grandes problemas da maior parte da população.
Ao invés disso, pelo usufruto das benécias e privilégios desmedidos, os bons líderes emsuas gestões estão escassos; são poucos os comandantes, que dão exemplo, distribuindo rendas, melhorando as engrenagens do serviço público e que procuram concederar o coletivo, de fato, uma fatia mais condizente do quinhão.
* Carlos Morais Vila-Nova, advogado,bancário aposentado (CARVALHO, José Murilo. Cidadania no Brasil – O longo caminho. 24. ed. São Paulo: Civilização Brasileira. 2001).