O arcebispo vermelho em Aracaju
Publicado em 21 de dezembro de 2022
Por Jornal Do Dia Se
Marcos Cardoso
Há quase 33 anos, no dia 25 de janeiro de 1990, Dom Hélder Câmara, arcebispo emérito de Olinda e Recife, esteve pela última vez em Aracaju. Veio a convite da Ordem dos Advogados do Brasil em Sergipe para proferir uma palestra sobre “O desafio da pobreza e a realidade brasileira”. Um tema recorrente na vida daquele que foi declarado Patrono Brasileiro dos Direitos Humanos. O presidente da OAB era o irrequieto Clóvis Barbosa de Melo.
Ele falou em esperança no governo de Fernando Collor, iniciado naquele mês, defendendo a livre manifestação do povo nas urnas como uma “virtude democrática”. A eleição presidencial de 1989 foi a primeira em quase 30 anos e Collor derrotou Luiz Inácio Lula da Silva no segundo turno.
Também disse ter assistido com esperança a queda do Muro de Berlim, evento de importância para a humanidade, acontecido poucos meses antes, mas ainda se preocupava com a possibilidade de novos conflitos mundiais. “É preciso rezar e trabalhar muito para que as superpotências não voltem a promover uma nova guerra mundial”.
E, claro, defendeu a opção preferencial pelos pobres como bandeira da Igreja Católica, tema que só seria efetivamente levado a sério pelo Papa Francisco, cujo pontificado Dom Helder não alcançou. Ele morreu em agosto de 1999, aos 90 anos. O cardeal Jorge Mario Bergoglio só foi entronizado no Vaticano em março de 2013.
A opção pelos pobres rendeu a Dom Helder perseguições pela ditadura militar e admoestações da própria Igreja. Foi acusado de ser comunista e taxado de “arcebispo vermelho”. Sofreu a censura da imprensa, onde tinha como um dos mais severos algozes ninguém menos que Nélson Rodrigues. “D. Helder só olha o céu para saber se leva ou não o guarda-chuva”, pilheriava o jornalista e teatrólogo.
Coincidentemente, seu governo na Arquidiocese de Olinda e Recife durou o mesmo tempo da ditadura militar, de 1964 a 1985. Quando se desligou dos afazeres da Arquidiocese, o papa João Paulo Segundo nomeou um arcebispo conservador, Dom José Cardoso Sobrinho, que desmontou a estrutura erguida por Dom Helder, afastou pelo menos 30 padres e extinguiu o Instituto de Teologia, o Seminário da Arquidiocese e a Comissão de Justiça e Paz. Na palestra que fez em Aracaju, recusou-se a falar sobre esse assunto.
Dom Helder foi um dos fundadores da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, que deve a ele ter conseguido a autorização do Vaticano para sua fundação em 1952. Foi Cidadão Honorário de 28 cidades brasileiras e estrangeiras e doutor honoris causa de 32 universidades do Brasil e do exterior.
Foi indicado quatro vezes ao Prêmio Nobel da Paz, sendo que, em 1970, o próprio ditador Emílio Garrastazu Médici dirigiu uma campanha para que ele não fosse o premiado. O que de fato nunca aconteceu.
Em maio de 2014, a Arquidiocese de Olinda e Recife enviou carta ao Vaticano solicitando a abertura de processo de canonização de Dom Hélder Câmara, que desde 2015 já é reconhecido como Servo de Deus, primeira etapa do processo de beatificação. No último dia 15 de novembro, a Arquidiocese anunciou a validação jurídica de todo o material enviado a Roma para o processo de beatificação e canonização, o que pode torná-lo venerável em breve.
E também no mês passado, o acervo de Dom Helder Câmara foi tombado pelo Governo de Pernambuco, reconhecendo a importância de dimensão estadual, nacional e internacional dos cerca de 210 mil itens que contam a história do arcebispo de Olinda e Recife, o “arcebispo vermelho”, aquele que fez a opção pelos pobres e nunca se rendeu aos poderosos.
Marcos Cardoso é jornalista e escritor