O Tombamento é mesmo um mecanismo de preservação?
Publicado em 01 de maio de 2025
Por Jornal Do Dia Se
* Moisés Santos Souza
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As recentes notícias de desabamento do teto da Igreja da Ordem Primeira de São Francisco no Pelourinho, em Salvador, em fevereiro deste ano e, mais perto de nós sergipanos, a queda da cúpula e o teto do prédio histórico do Instituto Parreiras Horta, em Aracaju, no dia 12 deste mês, levantam o questionamento se a política do tombamento está sendo realmente eficaz na preservação dos bens culturais edificados. As duas edificações são “protegidas” pelo mecanismo de tombamento, respectivamente, por órgãos do governo federal e estadual. Vide os exemplos acima, tenho minhas dúvidas se o importante instrumento de preservação está sendo eficiente na proteção dos nossos valiosos bens culturais.
Termo surgido no século XII e derivado a partir da Torre do Tombo, em Portugal, o instrumento Tombamento foi criado sob o pretexto de preservar bens de relevância artística e histórica. No Brasil, a sua origem remonta na política preservacionista influenciada pelos modernistas de 1922, principalmente, a partir do estudo preliminar de Mário de Andrade (1893-1945), que à semelhança de alguns países europeus, classificou os bens em quatro categorias ou livros de Tombo, a saber: Livro do Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico; Livro do Tombo Histórico; Livro do Tombo das Belas-Artes e Livro do Tombo das Artes Aplicadas. (1) Esse estudo de Mário foi a principal base para o texto do Decreto-lei n. 25/1937, que instrumentaliza, até hoje, a política estatal de preservação e proteção do patrimônio histórico e artístico nacional. Por este ato administrativo, realizado pelo Poder Público, em tese, fica protegido para preservação, os bens materiais, móveis e imóveis, de importante interesse à memória coletiva, proibindo a sua descaracterização e destruição. Na prática, infelizmente, o instrumento administrativo não foi capaz de impedir o desaparecimento de valiosos exemplares da arquitetura e da arte nacional. Houve falhas enormes pelos órgãos responsáveis na efetivação da política de preservação, tanto no plano federal como nos estaduais.
Desde que o tombamento entrou em vigor no Brasil, durante o Estado Novo, o principal órgão de preservação – o IPHAN (antigo SPHAN) -, conseguiu fazer destacadas ações de permanente proteção aos bens culturais construídos, inclusive na iniciativa de tombar núcleos urbanos originais inteiros, como são os casos de algumas cidades mineiras, ou mesmo, das sergipanas São Cristóvão e Laranjeiras, respectivamente, em 1967 e 1996; mas também, ao mesmo tempo, o órgão não conseguiu proteger alguns monumentos arquitetônicos de valor artístico inestimável, em decorrência da oscilante pressão e mudança política de preservação nos órgãos; da falta constante de recursos financeiros para necessárias revitalizações e reformas; nas precárias condições para fiscalizações dos bens tombados e mesmo na má-fé de alguns proprietários, que geralmente preferem a ruína dos próprios imóveis, evitando a conservação. Acrescente a isso a figura grotesca do Decreto-lei n. 3.866/1941, que dispõe sobre o cancelamento de tombamento do patrimônio, e que permitiu que bens já registrados como tombados (vide o antigo Cine Rio Branco, em Aracaju, por parte do governo estadual), pudessem ser levados ao chão,
Sendo assim, ficou verificado ao longo das décadas, o desaparecimento de relevantes testemunhos históricos da civilização brasileira, dando lugar a viadutos e avenidas que geralmente ligam “nada a lugar nenhum”; à horripilantes estacionamentos e a edifícios comerciais de arquitetura duvidosa; e/ou simplesmente, bens abandonados e deixados em estados de total decrepitude, pondo em risco muitas vezes, à vidas humanas de miseráveis desalojados, transeuntes e visitantes das edificações e seus entornos.
Em Sergipe, dos bens registrados em Livros do Tombo pelos órgãos de preservação, existem 73 bens tombados pelo governo estadual e 28 pelo governo federal, dispostos em 22 municípios sergipanos, à maioria concentrados nas cidades de Aracaju, Laranjeiras e São Cristóvão. (2) Em maior número, esses bens são constituídos por exemplares da arquitetura civil e religiosa, que vão desde os séculos XVII ao XX, e uma boa parte deles, clama urgência por recuperação, destinação de usos e medidas de reparos.
Exemplos temos aos montantes. Para ilustrar, fiquemos com alguns casos.
Em Aracaju, por anos, o prédio da Delegacia Fiscal do Ministério da Fazenda, na Praça Fausto Cardoso, encontra-se fechado, sem utilidade ou funcionalidade do bem. É preocupante, pois por encontrar-se fechado, facilmente terá sua degradação. O já citado prédio do Instituto Parreiras Horta, localizado no bairro São José, edificação que estava interditada e que tinha uma determinação da Justiça, em 2023, pela total recuperação do imóvel, não evitou o desabamento da cúpula e do teto, no último dia 12 de abril, em decorrência das fortes chuvas caídas na capital sergipana.
Em Estância, cidade natal deste articulista, prédios “protegidos” por decretos estaduais, estão sendo modificados sem critérios e alguns encontram-se em deterioração. O caso mais notório foi a situação sofrida de imponente sobrado, localizado na rua Capitão Salomão, que teve todas as paredes internas derrubadas, ficando somente de pé sua fachada. Outros bens tombados, sofreram modificações nas suas características originais, com retiradas de azulejos, frisos, arcadas das janelas, grades de ferro, e em virtude das condições precárias da estrutura física de alguns deles, podem ocorrer desabamentos.
Em situações não menos preocupantes, ou até maiores, são os estados físicos das igrejas dos séculos XVII, XVIII e XIX, tombadas pelo governos federal, localizadas em áreas das zonas rurais de nosso estado. As igrejas de Jesus, Maria e José (em Laranjeiras), a de Nossa Senhora da Penha (em Riachuelo), a de Nossa Senhora de Nazaré e a de Nossa Senhora da Conceição (em São Cristóvão), por décadas, perderam suas funções e utilidades de capelas pelas suas populações e estão em completo estado de ruína e abandono. Os telhados, tribunas das naves e parte dos altares já não existem e correm sérios riscos de arruinamento total das estruturas físicas. Já a Igreja/Capela de Nossa Senhora da Guia, mais conhecida como Igreja de Tejupeba, localizada na fazenda Iolanda, em Itaporanga d’Ajuda, pede por restauração, incluindo a recuperação dos retábulos dos altares, que estão empilhados, retalhados e mal armazenados no interior do templo. A residência jesuítica defronte a este templo, que segundo o jesuíta e historiador Serafim Leite (1890-1969) era ao longo do século XVII, uma “das mais significativas do Brasil”, precisa também de merecidos cuidados. Recentemente, a superintendência regional do IPHAN, fez um levantamento avaliando a conservação das estruturas das igrejas tombadas pelo órgão, para evitar a deterioração e prevenir acidentes. (3) O estudo constatou que nove igrejas tombadas estão em estado de conservação classificado como “ruim” ou “péssimo”. Entre elas, estão algumas das igrejas acima mencionadas. Infelizmente, após um ano do levantamento do órgão, não surgiram medidas e ações efetivas para preservação desse patrimônio religioso de Sergipe.
É triste constatar, em resumo, que o primeiro e fundamental instrumento para proteger os bens do patrimônio cultural edificado – o Tombamento -, e mesmo os órgãos institucionais de preservação, ainda não estão tendo a possibilidade no cumprimento das suas finalidades, por motivos diversos, que passam por poucos recursos financeiros; diminutos quadros de servidores especializados; falta de conscientização cultural da população e de autoridades; situações de conflitos entre os poderes, incluindo os dos municípios – estes, geralmente movidos e pressionados por interesses e questões políticas locais e circunstanciais – e também por ausência de cooperação para gestão da preservação dos bens patrimoniais. Espero, sinceramente, que os motivos listados não continuem sendo ocorrências desagradáveis na gestão cultural para manutenção dos nossos monumentos, e também espero, que apareçam ações e políticas públicas eficientes à favor do patrimônio cultural, para que se dissipa duvidas e questionamentos sobre o propósito do tombamento, que ainda é, um ato administrativo tão fundamental para preservação dos bens da nossa identidade nacional.
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Notas:
(1) Anteprojeto elaborado por Mário de Andrade. In: MEC/SPHAN/FNPM. Proteção e Revitalização do Patrimônio Cultural no Brasil: uma Trajetória. Brasília: SPHAN/FNPM, 1980. p. 90-98.
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(2) As informações da quantidade dos bens e cidades foram levantadas pelo articulista, a partir de consultas ao site do Iphan e do documento “Relação de bens protegidos por leis e decretos do governo do Estado de Sergipe”, este disponibilizado digitalmente no site do Ipatrimônio. Para consultar, visite as páginas: https://www.gov.br/iphan/pt-br e https://www.ipatrimonio.org. No caso específico das cidades de Laranjeiras e São Cristóvão, por também serem tombados como “conjuntos urbanos”, somam-se aos bens, respectivamente, cerca de 500 e 350 edificações nos perímetros urbanos tombados. In: Inventário Nacional de Bens Imóveis e Sítios Urbanos Tombados. Brasília: Cedit/Senado Federal/Iphan, 2007. p. 77-79.
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(3) Sobre o levantamento feito pela superintendência do Iphan, veja matéria jornalística em: https://www.fanf1.com.br/2025/02/11/sergipe-tem-nove-igrejas-em-situacao-ruim-ou-pessima-diz-iphan/.
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Referências:
ALVES, Francisco José. Sobre os bens sergipanos tombados – nota prévia. Jornal da Cidade. Aracaju/SE, 20-22 abr. 2008. p. C-4.
LIRA, Ciro Corrêa. Velharias postas abaixo. Revista de História da Biblioteca Nacional. Ano III, n. 26, Nov. 2007. p. 38-42.
SIMÃO, Maria Cristina Rocha. Preservação do Patrimônio Cultural em Cidades. Belo Horizonte: Autêntica, 2006.
SOUZA, Moisés Santos. Estância não sabe cuidar do seu patrimônio. Folha da Região, n. 380, Estância/SE, fev./mar. 2021. p. 02.
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*Moisés Santos Souza é graduado em História pela Universidade Federal de Sergipe/UFS. Entre 2007 e 2011, foi integrante do movimento “Defensores do Patrimônio Cultural Sergipano” (DPCS), coordenado pelo Prof. Dr. Francisco José Alves (DHI/UFS). Leciona na rede municipal de ensino de Lagarto/SE.