UM DIA EU QUIS SER GLÓRIA
Publicado em 04 de fevereiro de 2023
Por Jornal Do Dia Se
Vânia Azevedo
Hoje o Brasil acordou mais triste sob o impacto da notícia de falecimento de Glória Maria, ícone do jornalismo brasileiro, que inaugurou há cinco décadas, um estilo próprio de fazer jornalismo; um jeito novo de ser mulher: preta, destemida e pioneira. Uma mulher que soube, como ninguém, transverter a vida simples que lhe foi concebida, em uma missão que ao longo de sua trajetória, primou em desbravar o mundo através da profissão que tanto amou. Abriu portas para mulheres negras (e influenciou a tantas outras),fazendo da sua existência um obstinado ativista, a ponto de subverter o modo de se fazer jornalismo ao vivo, e tornar-se meta para tantas outras que lhe sucederam.
Se ainda hoje a mulher sofre o estigma de sexo frágil – em detrimento de sua capacidade e conhecimentos profissionais – ponho-me a imaginar o que era ser mulher, negra e pobre, no início da década de 1970, em um país sob a égide do regime militar…
A rigor, Glória Maria era dessas pessoas que sabia onde e como pisar, e mesmo se tratando de uma repórter negra, em início de carreira, não se intimidou ao corrigir o erro gramatical do então Presidente da República, João Baptista Figueiredo, que não se conteve; ao suscetibilizar, irrompeu em um brado de indignação que culminou com a expulsão da repórter, durante a entrevista que concedia aos principais veículos de televisão. Para ele, era uma afronta suportar a impetuosidade daquela repórter negra, que ele rotulou de insolente, ignorando a sua (duplamente temida) posição de General do Exército e Presidente da República. Não sabendo ele, na ocasião, que estava diante de uma das mais promissoras jornalistas que o Brasil veria.
Ela, por sua vez, acostumada a enfrentar o mundo desigual ao qual pertencia, a exemplo do bambu, jamais se dobraria: estava decidida a não se deixar intimidar, uma vez que lutar era parte da sua história. Posto isto, jamais recuou em suas lutas. Tampouco quando foi barrada pelo gerente de um hotel em Copacabana (1986)! A sua indignação sobejou o racismo dominante na sociedade, e naturalizado até então. Contrariamente ao que se esperaria de alguém naquela situação, ela compartilhou com o Brasil a humilhação sofrida, expondo a questão nacionalmente, deflagrando no país um imenso sentimento de revolta que se espalhou como um tufão raivoso. Como resposta, registrou a denúncia na delegacia mais próxima, utilizando-se da lei Afonso Arinos (que punia ofensas racistas) pela primeira vez no Brasil.
Entretanto, Glória Maria não era apenas uma representante de sua raça. Ela foi um símbolo para todas as mulheres, que se agigantava na ousadia de cada matéria que produzia mundo a fora; desafiando o medo; desnudando o desconhecido; nos confrontando com povos distantes, etnias e crenças excêntricas. Colecionar vistos era uma vaidade que jamais escondeu, sendo tão difundida quanto o seu receio de tornar pública a sua idade. Não sabendo que pessoas como ela jamais envelhecem: a capacidade de se reinventar é tão fértil quanto os gerânios, capazes de florescer em qualquer época do ano. E como uma planta rústica, sempre prezou por regras regulares, com destaque para o seu largo sorriso, capaz de magnetizar o nosso olhar; geralmente oferecendo respostas para a curiosidade do telespectador, sobretudo nas entrevistas mais excêntricas que miravam estrelas mundiais, fazendo-a brilhar intensamente sob o reflexo do seu trabalho de qualidade inquestionável.
Como opção de vida, escolheu ser livre como um pássaro, a voar pelos quatro cantos do mundo, até que finalmente juntou-se às suas crias. Por anos deu-lhes muito amor, ensinou-lhes da vida, para só então partir, deixando-lhes um rastro de amor e confiança no mundo que um dia cultivou para si.
E como ironia do destino, coube exatamente a ela (possuidora das cores originais da TV que a projetou), ser a primeira a entrar em cores no Jornal Nacional. Viveu uma vida de conquistas e lutas, reinventando-se e nos encantando, a ponto de transformar-se na personificação do que se chama vitória. Partiu, sim, mas deixou o seu largo sorriso eternizado em nossas mentes, e o seu legado de glória para sempre lembrarmos.
Um dia eu quis ser Glória. Hoje me contento com tudo que aprendi de sua história.
Vânia Azevedo é professora.