Os oitizeiros
Publicado em 11 de fevereiro de 2020
Por Jornal Do Dia
* Raymundo Mello
(publicação de Raymundinho Mello, seu filho)
Em tempo de derrubada de tan tas árvores na nossa cidade, passeando pela avenida Barão de Maruim nas proximidades da praça Camerino, recordei-me do artigo "Oitis e bursite", um texto de meu pai – o ‘Memorialista Raymundo Mello’ – publicado aqui no ‘Jornal do Dia’ na edição de 31/01/2017, muito aplaudido, à época, por seus leitores. Trago-o de volta na edição de hoje. Boa leitura pra todos! E que nem se pense em derrubar os oitizeiros!
Assim escreveu Raymundo Mello:
"Semana passada, como de praxe, no horário matinal às terças-feiras, saí de casa para um compromisso associativo; atravessei a ‘avenida Barão de Maruim’, saindo da ‘rua Itabaiana’, onde peguei aquela calçada larga, bem arborizada, rumando para a ‘praça Camerino’, trecho que conheço e frequento desde os anos 40, quando estudante do ‘Atheneu Sergipense’.
Confesso que aquele local, para mim, era um luxo, a partir da residência do ‘doutor Augusto Leite’ – casa linda, com jardins bem cuidados, ares de nobreza. E até a esquina da praça Camerino, outras residências de alto nível eram também apreciadas. Bem na esquina, um casarão estilo europeu que ficava defronte de um seu similar, edificado entre mangueiras e pitangueiras que frutificavam rotineiramente e eram preservadas por dois cães enormes que diziam ser ‘cachorros policiais’. Ali residia o professor ‘Manoel Franco Freire’ e família, esposa – que me foge o nome no momento -, três filhas (Vanda, Vera e Vesta) e dois filhos (Evaldo e Evando). Conheci todos e ligações mais próximas mantive apenas com Evaldo. Do professor, fui somente aluno de Inglês.
Onde existia a bela residência do doutor Augusto Leite, bem na esquina com Itabaiana – derrubada praticamente às escondidas em um fim-de-semana (de uma noite de sexta-feira a uma manhã de segunda-feira), uma jóia arquitetônica que deveria, sem dúvida nenhuma, ter sido preservada, não somente pelo preciosismo de suas linhas, mas pela tradição de seus proprietários – existe hoje uma construção simplória abrigando uma agência bancária. E na esquina de Barão de Maruim com a praça Camerino, os dois casarões quase idênticos foram substituídos por dois ‘elegantes’ edifícios, mas sem a graça e o charme de seus antigos moradores.
Voltando à manhã da terça-feira, relato o ocorrido, tema definitivo desta folha de memória que semanalmente publico.
Ao final da calçada da agência bancária à qual me referi, recebo uma forte pancada no ombro esquerdo, local onde cultivo, há uns 40 anos, uma ‘bursite’, que, quando começa a doer – por cerca de 5 dias, em média – é insuportável, mas eu me recuso a cirurgiá-la. Aceito vivermos unidos até quando Deus quiser. Ela ultimamente está de bom humor e não tem marcado presença; que assim continue.
A forte pancada que, a princípio julguei tratar-se de uma pedrada, foi, de fato, a queda de um oiti, amarelinho, maduro, caído de um oitizeiro carregadinho de frutos que ali – e em toda a extensão da avenida – existe, pelo menos em minha mente, há mais de 70 anos.
O oiti maduro, amarelinho, bateu em meu ombro, me fez gemer de dor, gritar um "Ai!" aflito e olhar para o chão; e lá estava o vilão, como que sorrateiramente a esconder-se entre pedregulhos e folhagem seca, "olhando" pra mim e dizendo a si mesmo: "Salvei a honra dos meus ancestrais que foram consumidos pelo velho que, na sua juventude, foi um grande degustador de oitis. Estão todos eles – oitis amarelinhos, meio-doces e meio-travosos – vingados. E agora, qual será sua reação?".
Pensei pisá-lo, atirá-lo ao longe após xingar seus pais, chamando-os de produtores de oitis mal-educados e agressivos. Eu estava ‘p… da vida’, o ombro doendo e eu surpreso, olhando para o oiti pancadeiro.
Acalmei-me, acariciei o ombro e até ri um pouco, mas fiquei chateado com o intruso. Na verdade, se ele houvesse se chocado com o meu ombro direito, isento de bursite, eu estaria aqui dizendo que um oiti maduro, bem amarelinho, aparentando ser doce-travoso, como um belo canarinho da terra pousou – não bateu – no meu ombro, bem maneirosamente, emitiu um breve silvo e, com toda graça, foi "pousar" entre uma pedra de canto de muro e folhagens verdinhas, dando àquele instante um tom de imagem da bandeira nacional, verde e amarela. Assim eu trataria aquela "pedrada", com delicadeza; mas o danado do oiti chocou-se mesmo com o meu ombro esquerdo e minha "adorada" bursite.
Tá bom! Vou perdoá-lo em homenagem aos seus antecessores, amarelinhos como ele, que muitas vezes colhi, enchi os bolsos e dividi com os colegas, a maioria, como eu, degustadores de oitis amarelinhos. E olha que era muita gente que corria às bases dos oitizeiros para recolher seus frutos, liberados para os catadores. Não os derrubávamos a pedra ou cacete. As árvores, alisadas pelos ventos que vinham da ‘rua da frente’ – hoje ‘avenida Ivo do Prado’ – liberavam seus frutos para nós, crianças de então, e os que sobravam de nossas "catações" iam para as bancas dos/as vendedores/as de frutas e doces.
O oiti dava pra todos. Hoje, ninguém recolhe mais ‘oitis amarelinhos, doces-travosos’, que de um dia para outro enrugam a pele e ficam ainda mais doces.
No meu modesto entendimento, o replantio de oitizeiros faria um grande bem à nossa cidade, traria mais sombra e clorofila para todos e, quem sabe, a garotada de hoje voltaria a gostar de oitis, amarelinhos, enrugados, doces-travosos.
Mais adiante vou falar de goiabeiras, tamarineiros, bandas de música, retretas e preguiças.
Ah!, sim, a minha bursite não reclamou nada. Foi mais educada que eu ou entendeu que minha queixa foi suficiente para continuarmos convivendo, ela ameaçando doer, e eu alisando o ombro, em paz".
* Raymundo Mello é Memorialistaraymundopmello@yahoo.com.br