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UM DIA APÓS O DILÚVIO


Publicado em 14 de maio de 2024
Por Jornal Do Dia Se


* Lelê Teles

“O que faz esse animal fora da arca, meu deus do céu?”, perguntou tia gorete, diante da cena diluviana.
Uma mão na cintura e outra na boca; a cara de espanto.
Ela via, pela tevê, a comovente imagem de um cavalo se equilibrando, como um bailarino, sobre a cumeeira de um telhado.
Imóvel, o equino parecia exausto.
Não se sabe por quanto tempo ele lutou contra aquelas furiosas águas barrentas, até fazer do telhado o seu estábulo.
Vovó Lizete, com as pernas estiradas no sofá retrátil, pediu pra irmã aumentar o volume da tevê.
O cãozinho, Biloca, latiu pedindo silêncio.
A veterinária informou ao repórter que um animal daquele porte poderia pesar até meia tonelada.
Tia Gorete olhou pra irmã com os olhos esbugalhados, vovó Lizete demonstrou o mesmo espanto, Biloca parecia emitir um enigmático riso de canto de boca.
A informação trouxe mais dramaticidade pra cena inusitada, porque o cavalo parecia levitar sobre aquela frágil estrutura sob suas patas.
A reportagem deu conta de que o bicho estava ali por pelo menos quatro dias e noites, de pé, com sede, com fome e com frio, tomando chuva no lombo.
Vovó Lizete lamentou a desgraça do pobre animal e torceu para que o resgate chegasse logo, rogando a graça a São Francisco de Assis.
Tia Gorete enxugava uma lágrima.
Biloca, que é poeta e filósofo como o Quincas Borba, imaginava como aquele cavalo devia estar usando a imaginação para obliterar aquela imagem de morte e destruição que é obrigado a encarar.
Ele deve estar sonhando acordado, pensou o cãozinho, imaginando-se novamente correndo, fagueiro e feliz, por uma campina verdejante, cheia de cavalos amigos, éguas de crinas cremosas e poltros brincantes.
Biloca tem razão, a poesia deste cavalo resiliente, comoveu por sua plasticidade, perseverança, força e determinação.
Ali era a vida, em seu estado bruto, lutando contra a brutalidade da morte.
O resgate, em fim, chegou.
Uma equipe de bombeiros e veterinários sedou o animal e o debruçou sobre um bote, enchendo o coração de tia Gorete e vovó Lizete de esperança e amor à vida.
Vovó Lizete não tem dúvidas de que São Francisco ouviu suas preces e intercedeu pelo quadrúpede.
A reportagem jogou mais doce na boca das senhoras, disse que o cavalo foi apelidado de Caramelo e que, como ele, mais de cinco mil animais já haviam sido resgatados.
Vês?, era um cavalo, e agora ele se multiplica em milhares de outros animais.
Vivinhos da silva.
Contemos, enquanto podemos, os que estão dentro da arca.
Porque por baixo daquelas águas ocres e lamacentas estão granjas, canis e galinheiros inteiros.
Milhares de bois e vacas, porcos e leitões, cavalos e éguas, cães e gatos, galinhas e patos morreram afogados.
Caramelo é uma metáfora para essa desgraça, o que não pode morrer, diz aquela imagem equina, é a poesia.
No dilúvio de 41, quando o rio Guaíba inundou Porto Alegre, Mário Quintana poetou que sonhava acordado vendo que “andava um barco de verdade assombrando corredores”.
Agora, barcos singram ruas, adentram estabelecimentos comerciais e entram pela porta da sala das casas, a resgatar viventes.
Ao final da reportagem, Biloca veio ao meu quarto, cabisbaixo como um náufrago, subiu na cama e pediu cafuné.
Emitia um latido fino e cheio de tristeza, o rabo colado ao corpo e ele todo enrolado, como uma bolinha.
Eu disse a ele, num suspiro, “quando baixarem as águas, biloca, veremos quantos humanos há entre os desumanos, porque vai ser preciso muita humanidade para lidar com tamanha dor diante de tantas perdas.
E quando será?, Ele perguntou, lançando-me um olhar de filósofo canino.
Todo dilúvio emite um sinal de seu desfecho, eu disse ao cão, mas nem toda arca atraca no ararate.
A nossa tragédia é brasileiríssima.
Quintana, o alegre poeta do alegrete, surgirá nos céus com um ramo de relva no bico.
E um anjo, todo molhado, tocará num telhado o seu flautim: pirulin, lulin, lulin.
Veremos, meu caro Biloquinha, muito em breve, uma praça cheia de crianças, sorrindo e soprando gaitinhas de boca.
Enquanto Caramelo voltará aos pampas, dando acrobáticos pinotes, relinchando alegre e coiceando o ar.
Oxalá Caramelo desfrute, equinamente, a sua segunda chance: sem cargas, sem chicotes e sem carroças.
A galopes, crina ao vento, beiços moles, ventas largas e abertas, a inalar o verde frescor da campina.
Nesse dia, colocarei na janela um par de sapatos floridos e eles ficarão lá, eternamente, como “dois velhos barcos abandonados à margem tranquila de um açude”.
Tudo passará, biloca.
E nós, passarinhos, latiu o cãozinho.
Palavra da salvação.

* Lelê é jornalista, publicitário e roteirista

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